sábado, 24 de outubro de 2009

Amar é muito mais arriscado do que se imagina.

Acabo de chegar do cinema. Fui sozinha assistir "Up – Altas aventuras". É aquele filme em que um velhinho sai voando em sua casa suspensa por balões quando vêm buscá-lo para levá-lo para um asilo. Ele voa com toda a sua vida junto. Vai para o futuro, rumo a um sonho do passado. Quer justificar a sua vida – talvez mais que a sua, a da mulher que ama. Conheceram-se quando eram duas crianças que sonhavam viver grandes aventuras, explorar o mundo. Agora viúvo, cheio de dores, apoiado em sua bengala, Carl Fredricksen (esse é o nome dele) voa em busca da terra das cachoeiras gigantes de sua infância, naquela que parece a mais arrojada de todas as expedições de uma vida que vale a pena. Descobre então que não há aventura maior – e mais arriscada – que a vida compartilhada com quem se ama.

Não, eu não contei o fim do filme. Só a vida de todos nós. Uma fábula que, de tão banal que é, nem sempre alcançamos. Nos últimos anos, por diferentes motivos, acompanhei o fim da vida de muitas pessoas. Algumas delas não morreram, mas viveram a experiência de ter a morte bem concreta, logo ali no dia seguinte. Bem perto do fim, o que elas queriam saber é se a vida delas havia sido uma vida plena. O que precisavam ter certeza é que sua existência tinha valido a pena. Percebi que só morriam em paz aqueles que se reconciliavam com a vida vivida. Com todas as suas perdas, desistências e covardias. Com os limites todos, sendo o maior deles a morte logo ali adiante. Os que não conseguiam olhar para sua própria vida com generosidade morriam agitados, convulsos. Nessa hora, não havia morfina que aplacasse sua dor.
Não há vida que não tenha sua cota de desistências, perdas e covardias. Seja a de um astro de Hollywood que ganha milhões por filme, seja a do mendigo que carrega a casa nas costas, seja a de qualquer um de nós. Nossas semelhanças são avassaladoras. “Up”, essa animação tão adulta nos dá a chance de uma reconciliação. Não precisamos como Carl Fredricksen, chegar perto dos 80 anos para descobrir que os pequenos morros que escalamos com nossas pernas nem sempre em forma e nossos pulmões ofegantes foram pelo menos tão altos quanto o Everest. Quanto mais cedo nos reconciliarmos com nossa aventura pessoal, mais cedo estaremos livres para nos lançarmos em descobertas outras.

Há uma frase de Russell, o menino que acompanha Fredricksen nesta aventura, que pode nos ajudar a olharmos para a nossa vida, nem sempre no topo, com a generosidade necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.

É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa para dias de chuva da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício. Lembrei de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser considerada ultrajantemente chata. Absurda mesmo!

Todos os domingos, a minha família inteira se reunia em minha casa para o almoço de domingo que só terminava na ceia. Eu não suportava esses encontros. Mas tinha que aceitá-los, pois era o dia em que a minha mãe mais ficava feliz. Ainda mais que o meu pai havia falecido não havia muito tempo.

A casa ficava cheia, ainda bem que era uma casa bem grande, e tinha tanto barulho e tantas crianças por todos os lados que eu pensava que iria enlouquecer um dia. O tempo foi se passando, as coisas foram mudando, principalmente a nossa situação financeira! Tivemos que nos mudar. E por algum motivo a família foi se dispersando.

Hoje, esses encontros ainda acontecem, mas não na mesma proporção. Chego à conclusão que havia um fundo de verdade naquilo tudo. Nós éramos mais felizes. Eram outros tempos. As pessoas mudaram, eu também mudei. Eu amava tudo aquilo e não sabia. E por conta disso, hoje, sou uma pessoa mais humana, sou uma pessoa muito melhor. Tive que passar por tudo isso para poder entender que as pessoas, não são apenas pessoas, elas são parte do que nós somos.

Foi disso que eu lembrei acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos – e que nos escolhe. O amor é sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos capazes é um enorme risco. Porque damos ao outro um grande poder, o poder de nos refletir.

Aprendi que vale a pena amar aquelas pessoas que, quando nos vimos nos olhos delas, temos vontade de ser alguém melhor ainda do que somos. Elas vêem tudo àquilo de bom e de generoso que podemos ser. Não significa que não enxergam nossas imperfeições e mesquinharias, mas que vêem além delas. Então, do lado de cá do espelho, ficamos desejando nos tornar o que vemos refletido lá.

O homem que eu amo tem esse olhos que me vêem boa e bela. E quando ele olha nos meus olhos também se vê bom e belo. E cada minuto que passamos juntos, tempo que a vida nos exige demais, e cobra cada centavo por isso. Cada um de nós chega mais perto do que vê de si no olhar do outro. E isso não tem nada a ver com sermos outros, mas com a capacidade que só o amor generoso tem de nos tornar mais radicalmente o que somos.

Muita gente se pergunta se está com a pessoa certa. Não entendo bem o conceito de “pessoa certa”. Em geral, acho que essa pergunta já diz que algo está errado. Mas se existe um jeito de saber, eu acho que é esse. Quem diz me amar faz de mim alguém não diferente do que sou, mas melhor? Eu faço de quem amo alguém não diferente do que é, mas melhor? Pelo olhar do outro me torno mais o que sou? E vice-versa?

Observo muito as pessoas e suas relações amorosas. Vejo que vão se tornando muito parecidas com aquilo que o outro da relação diz que ela ou ele é. Quando esse olhar não é amoroso, não é generoso, é uma tragédia, o outro se torna tão opaco que chega a sumir. Chega a anular-se a si mesmo, perdendo totalmente o amor próprio. O outro se torna feio e relaxado. Porque a relação é um espelho.

Já sabemos disso muito antes da vida adulta, basta observar as crianças que são realmente amadas, amadas o suficiente para que os pais gastem tempo lhes dando também limites. Mas não só. Amadas o suficiente para serem enxergadas e escutadas e acariciadas. E o que se tornam aquelas que foram aniquiladas pelo olhar dos pais.

Quando crescemos, alguns de nós, que receberam na infância um olhar pouco generoso ou mesmo ausente, reincidem ao buscar um companheiro ou companheira para a vida que repete esse olhar aniquilador. Atribui para si a missão fadada ao fracasso de mudar o outro. Alterar esse olhar, transformar o outro e o olhar do outro para redimir toda uma vida. E, tentativa após tentativa, encontrando sempre esse mesmo olhar mesquinho, acaba acreditando que é ela ou ele que não vale à pena. É bem triste. Em geral, esses casais passam a vida massacrando um ao outro, já que duas pessoas só ficam juntas se algo nelas se encaixa. Mesmo que seja uma tremenda neurose. É preciso que um dos dois consiga quebrar esse espelho ruim e partir para algo que faça bem a si mesmo.

Descobri recentemente que os nossos encontros de domingo não eram tão bons assim. Eram até bem sem graça. Mas eles se tornaram bons porque meus olhos agora são amorosos, meus olhos agora os vêem bons. Naquela casa grande e cheia, nós éramos uma família amorosa, olhando para o mundo com olhos generosos. Esse olhar me carregou pela vida afora.


Ao sair do cinema depois de assistir à "Up – Altas Aventuras" passeei pelo shopping apenas para comprar, para o homem que me enxerga com os olhos do amor, todas as coisas boas de que ele gosta. Ele passou um bom tempo fora, longe, mas trabalhando. Eu sabia que não podia ligar, porque ele estava submerso no caos da vida. Mas eu tinha de dar um jeito de alcançá-lo. Mandei então uma mensagem dizendo “Eu o amo”. Banal assim. Clichê e piegas. Mas foi a única coisa que me ocorreu para agradecer a ele pela grande aventura que compartilhamos juntos.

Quando ele voltou para mim, depois dessa longa e cansativa viajem, as coisas na minha vida saíram voando. E eu nem tinha balões.

Suely Carvalho.

4 comentários:

  1. poxaaaaaaaaa. porq tu não me chamaste? :(. iria contigo. hehe.
    É mesmo uma vida difícil viver uma vida compartilhada com alguém, pode ser com quem se ama ou não (por incrível que pareça).
    Amor é uma coisa difícil de se entender. Até chegamos a confundir com paixão. Agora como saber se é amor?
    E eu pensando nessas suas primeiras afirmativas, lembrei-me do "eterno enquanto dure". Não entendia o que significava. Só depois que fui entender que é para aproveitar ao máximo o momento em questão.

    e o que é ser uma pessoa melhor com quem se ama?
    Será que eu poderia definir o amor? ou a melhor maneira de amar?

    Enfim, gostei do post. =D
    Bjos Suuu

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  2. Caramba, eu não quero mais nem dormir! é sério!
    Estou aqui a pensar na minha vida, no que vive ano passado e nossa, Oh My God! Como eu queria voar novamente sem balões, sorrir com os olhos, passar o dia totalmente besta com beijos e abraços que recebi! Como vc consegui falar sobre mim indiretamente em seus textos (eu me acho), mas falo sério, me vejo em casa palavra escrita, e sabes que sou sua fã! Amo ler seus textos, todos eles, sem exceções!

    Eu a amo e muito, e não quero chegar aos 80 pra perceber o quão bom é viver!

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  3. Suely,
    Como vc. escreve bem!
    Texto gostoso, fácil de ler, de entender, de viajar contigo pelas palavras.
    Li também os anteriores e achei todos legais.
    Parabéns!
    Bjs.
    www.experimentandocosmeticos.blogspot.com

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  4. Mui Belo suas Letras senhorita Suely!

    Assisti a esse filme e pude perceber o quão as pessoas deixam-se prender ao passado e o quão vivem tão fastidiosamente suas vidas. Se me permite, tenho um ponto de vista acerca desse filme.

    Carl Fredricksen se prende tanto ao passado que esquece da sua própria vida. Sem Ellie, a vida dele parece não ter mais sentido, e o amor e as recordações, bem como a presença de Ellie em sua vida ainda é tão forte que o leva a realizar um sonho que ambos tinham há muito tempo e que não conseguiam concretizar.

    Não conseguiram porque sempre tinham outras prioridades, sempre ocorria algo que o impediam de viajar, e deixaram o sonho para depois. Contudo, nota-se que Ellie sabia viver, sabia que a vida é uma aventura.

    E o filme me mostrou isso, é preciso viver cada momento muito verdadeiramente, não como se o mundo fosse acabar amanhã, mas os momentos que temos, a família reunida, mesmo que seja por um instante, é tudo que precisamos para resgatar as emoções próprias de famílias. Uma cartinha para a namorada(o) ou um EU TE AMO inesperado, ou um momento de brincadeira e risos é tudo que um casal precisa para continuar firme.

    Mas trazendo para a âmbito do filme, um dia isso acaba e devemos buscar novas aventuras, novos momentos.

    O passado é tudo somos. Não digo aqui que o passado seja ruim ou perda de tempo, mas algo para ser lembrado saudosamente. Lembro-me às vezes do passado e digo a mim mesmo que naquele tempo eu gostava de estar com minha família reunida... mas passou, agora são outros tempos e uma nova vida, novos sonhos e conquistas. Se eu for tentar reunir toda a minha família como antigamente, com certeza não irei conseguir e se conseguisse, não seria inteiramente como antes. A partir do momento que Carl chegasse ao “Paraíso”... ele provavelmente iria sentir muito mais falta de Ellie, visto que ela já não se encontrava com ele. Ele não se sentiria completo.

    Interessante afirmar que devemos jogar os “móveis” que deixam nossa “casa” no chão.

    Sim. Conforme fez Carl Fredricksen. E é isso que eu mais considerei nesse filme. Às vezes é duro perder alguém a quem muito se ama, e isso pesa muito na consciência, mas a vida continua e isso é muito forte quando ele consegue ver todo o álbum, as aventuras que eles viveram juntos.

    E ele joga o sofá, o armário, a geladeira, joga sua antiga vida e deixa sua casa mais leve. Às vezes é preciso jogar nossos ressentimentos, orgulho, preguiça, e parar de viver só no passado, e ir em busca de outros objetivos, outros sonhos, outras aventuras.

    Carl não se desprendeu totalmente de Ellie, ele guarda o que é necessário: uma foto e a recordação dos lindos momentos que viveram juntos.

    E todos conseguiram realizar algo que faltavam neles: Ellie o paraíso (a casa cai num cenário idênticos a que sonhavam), Carl encontrou um novo objetivo (um filho) e Russell, um companheiro, um irmão, um amigo... um pai.
    “Eu sei que tudo isso parece chato, mas são essas coisas chatas que eu mais me recordo”. Quem vai querer saber dos sonhos de fulano ou das recordações de ciclano? Às vezes não paramos para pensar, mas são pequenas coisas que nos fazem felizes né? Russell não exigia muito, não queria GPS (nem chorou quando este caiu – hilário) ou brinquedos modernos, só queria contar carros azuis e vermelhos com o pai. Coisa tão banal mas tão, tão importante para ele...

    “Obrigada por viver comigo altas aventuras, agora viva as suas”. De um homem amargurado e caduco, Carl passa a corajoso e afetuoso.

    Suely, é isso, acho que escrevi muito, mas esse filme é muito lindo, sem falar que é cômico e engraçado, e também achei seu texto belo e de fácil leitura. Show!

    É a primeira vez que acesso seu blog e achei muito interessante.

    Valeu!

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