Não, eu não contei o fim do filme. Só a vida de todos nós. Uma fábula que, de tão banal que é, nem sempre alcançamos. Nos últimos anos, por diferentes motivos, acompanhei o fim da vida de muitas pessoas. Algumas delas não morreram, mas viveram a experiência de ter a morte bem concreta, logo ali no dia seguinte. Bem perto do fim, o que elas queriam saber é se a vida delas havia sido uma vida plena. O que precisavam ter certeza é que sua existência tinha valido a pena. Percebi que só morriam em paz aqueles que se reconciliavam com a vida vivida. Com todas as suas perdas, desistências e covardias. Com os limites todos, sendo o maior deles a morte logo ali adiante. Os que não conseguiam olhar para sua própria vida com generosidade morriam agitados, convulsos. Nessa hora, não havia morfina que aplacasse sua dor.
Não há vida que não tenha sua cota de desistências, perdas e covardias. Seja a de um astro de Hollywood que ganha milhões por filme, seja a do mendigo que carrega a casa nas costas, seja a de qualquer um de nós. Nossas semelhanças são avassaladoras. “Up”, essa animação tão adulta nos dá a chance de uma reconciliação. Não precisamos como Carl Fredricksen, chegar perto dos 80 anos para descobrir que os pequenos morros que escalamos com nossas pernas nem sempre em forma e nossos pulmões ofegantes foram pelo menos tão altos quanto o Everest. Quanto mais cedo nos reconciliarmos com nossa aventura pessoal, mais cedo estaremos livres para nos lançarmos em descobertas outras.
Há uma frase de Russell, o menino que acompanha Fredricksen nesta aventura, que pode nos ajudar a olharmos para a nossa vida, nem sempre no topo, com a generosidade necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.
É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa para dias de chuva da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício. Lembrei de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser considerada ultrajantemente chata. Absurda mesmo!
Todos os domingos, a minha família inteira se reunia em minha casa para o almoço de domingo que só terminava na ceia. Eu não suportava esses encontros. Mas tinha que aceitá-los, pois era o dia em que a minha mãe mais ficava feliz. Ainda mais que o meu pai havia falecido não havia muito tempo.
A casa ficava cheia, ainda bem que era uma casa bem grande, e tinha tanto barulho e tantas crianças por todos os lados que eu pensava que iria enlouquecer um dia. O tempo foi se passando, as coisas foram mudando, principalmente a nossa situação financeira! Tivemos que nos mudar. E por algum motivo a família foi se dispersando.
Hoje, esses encontros ainda acontecem, mas não na mesma proporção. Chego à conclusão que havia um fundo de verdade naquilo tudo. Nós éramos mais felizes. Eram outros tempos. As pessoas mudaram, eu também mudei. Eu amava tudo aquilo e não sabia. E por conta disso, hoje, sou uma pessoa mais humana, sou uma pessoa muito melhor. Tive que passar por tudo isso para poder entender que as pessoas, não são apenas pessoas, elas são parte do que nós somos.
Foi disso que eu lembrei acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos – e que nos escolhe. O amor é sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos capazes é um enorme risco. Porque damos ao outro um grande poder, o poder de nos refletir.
Aprendi que vale a pena amar aquelas pessoas que, quando nos vimos nos olhos delas, temos vontade de ser alguém melhor ainda do que somos. Elas vêem tudo àquilo de bom e de generoso que podemos ser. Não significa que não enxergam nossas imperfeições e mesquinharias, mas que vêem além delas. Então, do lado de cá do espelho, ficamos desejando nos tornar o que vemos refletido lá.
O homem que eu amo tem esse olhos que me vêem boa e bela. E quando ele olha nos meus olhos também se vê bom e belo. E cada minuto que passamos juntos, tempo que a vida nos exige demais, e cobra cada centavo por isso. Cada um de nós chega mais perto do que vê de si no olhar do outro. E isso não tem nada a ver com sermos outros, mas com a capacidade que só o amor generoso tem de nos tornar mais radicalmente o que somos.
Muita gente se pergunta se está com a pessoa certa. Não entendo bem o conceito de “pessoa certa”. Em geral, acho que essa pergunta já diz que algo está errado. Mas se existe um jeito de saber, eu acho que é esse. Quem diz me amar faz de mim alguém não diferente do que sou, mas melhor? Eu faço de quem amo alguém não diferente do que é, mas melhor? Pelo olhar do outro me torno mais o que sou? E vice-versa?
Observo muito as pessoas e suas relações amorosas. Vejo que vão se tornando muito parecidas com aquilo que o outro da relação diz que ela ou ele é. Quando esse olhar não é amoroso, não é generoso, é uma tragédia, o outro se torna tão opaco que chega a sumir. Chega a anular-se a si mesmo, perdendo totalmente o amor próprio. O outro se torna feio e relaxado. Porque a relação é um espelho.
Já sabemos disso muito antes da vida adulta, basta observar as crianças que são realmente amadas, amadas o suficiente para que os pais gastem tempo lhes dando também limites. Mas não só. Amadas o suficiente para serem enxergadas e escutadas e acariciadas. E o que se tornam aquelas que foram aniquiladas pelo olhar dos pais.
Quando crescemos, alguns de nós, que receberam na infância um olhar pouco generoso ou mesmo ausente, reincidem ao buscar um companheiro ou companheira para a vida que repete esse olhar aniquilador. Atribui para si a missão fadada ao fracasso de mudar o outro. Alterar esse olhar, transformar o outro e o olhar do outro para redimir toda uma vida. E, tentativa após tentativa, encontrando sempre esse mesmo olhar mesquinho, acaba acreditando que é ela ou ele que não vale à pena. É bem triste. Em geral, esses casais passam a vida massacrando um ao outro, já que duas pessoas só ficam juntas se algo nelas se encaixa. Mesmo que seja uma tremenda neurose. É preciso que um dos dois consiga quebrar esse espelho ruim e partir para algo que faça bem a si mesmo.
Descobri recentemente que os nossos encontros de domingo não eram tão bons assim. Eram até bem sem graça. Mas eles se tornaram bons porque meus olhos agora são amorosos, meus olhos agora os vêem bons. Naquela casa grande e cheia, nós éramos uma família amorosa, olhando para o mundo com olhos generosos. Esse olhar me carregou pela vida afora.
Ao sair do cinema depois de assistir à "Up – Altas Aventuras" passeei pelo shopping apenas para comprar, para o homem que me enxerga com os olhos do amor, todas as coisas boas de que ele gosta. Ele passou um bom tempo fora, longe, mas trabalhando. Eu sabia que não podia ligar, porque ele estava submerso no caos da vida. Mas eu tinha de dar um jeito de alcançá-lo. Mandei então uma mensagem dizendo “Eu o amo”. Banal assim. Clichê e piegas. Mas foi a única coisa que me ocorreu para agradecer a ele pela grande aventura que compartilhamos juntos.
Quando ele voltou para mim, depois dessa longa e cansativa viajem, as coisas na minha vida saíram voando. E eu nem tinha balões.
Suely Carvalho.