sábado, 24 de outubro de 2009

Amar é muito mais arriscado do que se imagina.

Acabo de chegar do cinema. Fui sozinha assistir "Up – Altas aventuras". É aquele filme em que um velhinho sai voando em sua casa suspensa por balões quando vêm buscá-lo para levá-lo para um asilo. Ele voa com toda a sua vida junto. Vai para o futuro, rumo a um sonho do passado. Quer justificar a sua vida – talvez mais que a sua, a da mulher que ama. Conheceram-se quando eram duas crianças que sonhavam viver grandes aventuras, explorar o mundo. Agora viúvo, cheio de dores, apoiado em sua bengala, Carl Fredricksen (esse é o nome dele) voa em busca da terra das cachoeiras gigantes de sua infância, naquela que parece a mais arrojada de todas as expedições de uma vida que vale a pena. Descobre então que não há aventura maior – e mais arriscada – que a vida compartilhada com quem se ama.

Não, eu não contei o fim do filme. Só a vida de todos nós. Uma fábula que, de tão banal que é, nem sempre alcançamos. Nos últimos anos, por diferentes motivos, acompanhei o fim da vida de muitas pessoas. Algumas delas não morreram, mas viveram a experiência de ter a morte bem concreta, logo ali no dia seguinte. Bem perto do fim, o que elas queriam saber é se a vida delas havia sido uma vida plena. O que precisavam ter certeza é que sua existência tinha valido a pena. Percebi que só morriam em paz aqueles que se reconciliavam com a vida vivida. Com todas as suas perdas, desistências e covardias. Com os limites todos, sendo o maior deles a morte logo ali adiante. Os que não conseguiam olhar para sua própria vida com generosidade morriam agitados, convulsos. Nessa hora, não havia morfina que aplacasse sua dor.
Não há vida que não tenha sua cota de desistências, perdas e covardias. Seja a de um astro de Hollywood que ganha milhões por filme, seja a do mendigo que carrega a casa nas costas, seja a de qualquer um de nós. Nossas semelhanças são avassaladoras. “Up”, essa animação tão adulta nos dá a chance de uma reconciliação. Não precisamos como Carl Fredricksen, chegar perto dos 80 anos para descobrir que os pequenos morros que escalamos com nossas pernas nem sempre em forma e nossos pulmões ofegantes foram pelo menos tão altos quanto o Everest. Quanto mais cedo nos reconciliarmos com nossa aventura pessoal, mais cedo estaremos livres para nos lançarmos em descobertas outras.

Há uma frase de Russell, o menino que acompanha Fredricksen nesta aventura, que pode nos ajudar a olharmos para a nossa vida, nem sempre no topo, com a generosidade necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.

É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa para dias de chuva da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício. Lembrei de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser considerada ultrajantemente chata. Absurda mesmo!

Todos os domingos, a minha família inteira se reunia em minha casa para o almoço de domingo que só terminava na ceia. Eu não suportava esses encontros. Mas tinha que aceitá-los, pois era o dia em que a minha mãe mais ficava feliz. Ainda mais que o meu pai havia falecido não havia muito tempo.

A casa ficava cheia, ainda bem que era uma casa bem grande, e tinha tanto barulho e tantas crianças por todos os lados que eu pensava que iria enlouquecer um dia. O tempo foi se passando, as coisas foram mudando, principalmente a nossa situação financeira! Tivemos que nos mudar. E por algum motivo a família foi se dispersando.

Hoje, esses encontros ainda acontecem, mas não na mesma proporção. Chego à conclusão que havia um fundo de verdade naquilo tudo. Nós éramos mais felizes. Eram outros tempos. As pessoas mudaram, eu também mudei. Eu amava tudo aquilo e não sabia. E por conta disso, hoje, sou uma pessoa mais humana, sou uma pessoa muito melhor. Tive que passar por tudo isso para poder entender que as pessoas, não são apenas pessoas, elas são parte do que nós somos.

Foi disso que eu lembrei acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos – e que nos escolhe. O amor é sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos capazes é um enorme risco. Porque damos ao outro um grande poder, o poder de nos refletir.

Aprendi que vale a pena amar aquelas pessoas que, quando nos vimos nos olhos delas, temos vontade de ser alguém melhor ainda do que somos. Elas vêem tudo àquilo de bom e de generoso que podemos ser. Não significa que não enxergam nossas imperfeições e mesquinharias, mas que vêem além delas. Então, do lado de cá do espelho, ficamos desejando nos tornar o que vemos refletido lá.

O homem que eu amo tem esse olhos que me vêem boa e bela. E quando ele olha nos meus olhos também se vê bom e belo. E cada minuto que passamos juntos, tempo que a vida nos exige demais, e cobra cada centavo por isso. Cada um de nós chega mais perto do que vê de si no olhar do outro. E isso não tem nada a ver com sermos outros, mas com a capacidade que só o amor generoso tem de nos tornar mais radicalmente o que somos.

Muita gente se pergunta se está com a pessoa certa. Não entendo bem o conceito de “pessoa certa”. Em geral, acho que essa pergunta já diz que algo está errado. Mas se existe um jeito de saber, eu acho que é esse. Quem diz me amar faz de mim alguém não diferente do que sou, mas melhor? Eu faço de quem amo alguém não diferente do que é, mas melhor? Pelo olhar do outro me torno mais o que sou? E vice-versa?

Observo muito as pessoas e suas relações amorosas. Vejo que vão se tornando muito parecidas com aquilo que o outro da relação diz que ela ou ele é. Quando esse olhar não é amoroso, não é generoso, é uma tragédia, o outro se torna tão opaco que chega a sumir. Chega a anular-se a si mesmo, perdendo totalmente o amor próprio. O outro se torna feio e relaxado. Porque a relação é um espelho.

Já sabemos disso muito antes da vida adulta, basta observar as crianças que são realmente amadas, amadas o suficiente para que os pais gastem tempo lhes dando também limites. Mas não só. Amadas o suficiente para serem enxergadas e escutadas e acariciadas. E o que se tornam aquelas que foram aniquiladas pelo olhar dos pais.

Quando crescemos, alguns de nós, que receberam na infância um olhar pouco generoso ou mesmo ausente, reincidem ao buscar um companheiro ou companheira para a vida que repete esse olhar aniquilador. Atribui para si a missão fadada ao fracasso de mudar o outro. Alterar esse olhar, transformar o outro e o olhar do outro para redimir toda uma vida. E, tentativa após tentativa, encontrando sempre esse mesmo olhar mesquinho, acaba acreditando que é ela ou ele que não vale à pena. É bem triste. Em geral, esses casais passam a vida massacrando um ao outro, já que duas pessoas só ficam juntas se algo nelas se encaixa. Mesmo que seja uma tremenda neurose. É preciso que um dos dois consiga quebrar esse espelho ruim e partir para algo que faça bem a si mesmo.

Descobri recentemente que os nossos encontros de domingo não eram tão bons assim. Eram até bem sem graça. Mas eles se tornaram bons porque meus olhos agora são amorosos, meus olhos agora os vêem bons. Naquela casa grande e cheia, nós éramos uma família amorosa, olhando para o mundo com olhos generosos. Esse olhar me carregou pela vida afora.


Ao sair do cinema depois de assistir à "Up – Altas Aventuras" passeei pelo shopping apenas para comprar, para o homem que me enxerga com os olhos do amor, todas as coisas boas de que ele gosta. Ele passou um bom tempo fora, longe, mas trabalhando. Eu sabia que não podia ligar, porque ele estava submerso no caos da vida. Mas eu tinha de dar um jeito de alcançá-lo. Mandei então uma mensagem dizendo “Eu o amo”. Banal assim. Clichê e piegas. Mas foi a única coisa que me ocorreu para agradecer a ele pela grande aventura que compartilhamos juntos.

Quando ele voltou para mim, depois dessa longa e cansativa viajem, as coisas na minha vida saíram voando. E eu nem tinha balões.

Suely Carvalho.

domingo, 18 de outubro de 2009

Religião faz mal à saude?

Ciência ou religião? Não me diga que você já está entediado com essa discussão.
Os trabalhos clássicos de dois fundadores da Sociologia, Émile Durkheim e Max Webber, que no início do século XX, ofereceram explicações sobre como, nas várias partes do mundo, as religiões modelam pelas sociedades nas quais estão inseridas e, com isso, sugerem que a religião seja uma forma de nos proteger contra as doenças.

O foco crescente sobre o individualismo, no mundo ocidental, desde que Durkheim escreveu que “Deus é a sociedade, num sentido amplo”, pode ser percebido no atual entusiasmo sobre o estudo cerebral de mapeamentos religiosos, Neuroteologia: tentativas de mapear e relacionar experiências religiosas com a atividade cerebral e uma predisposição genética para certos estados mentais.

Esse estudo, liderado por Corey Fincher da Universidade de Albuquerque do Novo México, podem em nos dizer por que algumas pessoas têm tendências religiosas, mas esclarecem muito pouco por que essa predisposição resulta em um número pequeno de religiões institucionalizadas. De modo semelhante, os militantes, os ateus militantes que rangem os seus dentes diante da absoluta irracionalidade da crença religiosa, estão fadados a fazê-lo para sempre, a menos que aceitem o ponto de vista de Durkheim de que, em vez de estar com algum vírus mental que se propaga através das culturas, a religião possui capital social e, por conseguinte, um possível valor adaptativo.

Existem ainda aqueles grupos coesos que rejeitam os que não pertencem ao seu grupo e, isso é tão verdadeiro para a religião quanto para qualquer tipo de associação. Para Fincher, algumas sociedades podem se beneficiar da visão limitadora da religião, evitar doenças.

Quanto mais uma sociedade se dispersa e se mistura com outros grupos, maior é o risco de se contraírem doenças- em outras palavras, estranhos fazem mal à saúde. A psicologia da xenofobia e do etnocentrismo está relacionada de maneira significativa ao ato de evitar doenças infecciosas.

Ele demonstrou também que a diversidade de linguagem dentro de uma sociedade, por exemplo, parece se correlacionar com a diversidade de doenças infecciosas, sugerindo que diferenças lingüísticas são uma manifestação das estratégias para evitar doenças.

Nesse trabalho, ele descobriu que há uma maior diversidade religiosa em regiões do mundo onde é mais alto o risco de se contrair algo sério de pessoas estranhas ao grupo (que provavelmente apresentam padrões diferentes de imunidade).

Curiosidade: Foram estudadas 339 sociedades da África, Ásia, América E Austrália e descobriram que as pessoas que vivem em áreas de maior diversidade de doenças infecciosas (e, portanto, com um risco mais alto de contágio por estranhos) tendem a ter menores “variações sociais”: na média essas pessoas vivem a sua vida em áreas de menor extensão. E populações com menores variações sociais apresentavam maior diversidade religiosa.

Ainda que seja uma observação curiosa, é muito difícil separar causa e efeito. Qualquer pessoa poderia argumentar que o contato com outros grupos sociais impede alguns traços culturais à custa de outros, e, portanto, mantém uma diversidade que tende a surgir em qualquer outro lugar.

A teoria de Fincher apenas ratifica a mera função da religião de manter separados “os que pertencem ao grupo” daqueles que “não pertencem”. Comparados com outros indicadores “intragrupais”, tais como nomes de família, ou estilos de arte e música, a religião é um meio grotesco de alto custo social, quando se trata de separar amigos de supostos inimigos. Os seres humanos são muito competentes em identificar mínimos sinais de diferenças.

Moral da história: está muito longe de ser uma teoria de como e por que as religiões surgem e se difundem. No entanto, ela sugere que há influencias biológicas escondidas na dinâmica da diversificação cultural. É também uma advertência útil de que a religião não é tanto uma questão de crença pessoal, mas, nas palavras de Durkheim, ela é muito mais “um fato social”.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Carta ao meu Amor: A última carta.


Aguardem, carta sob resgate!

Carta ao meu Amor: Espero que gostes.

As cartas que eu escrevo para você devem ser de uma simplicidade muito evidente. Uma vez que não passam de meras frases grafadas em um pedaço de papel. E após a sua leitura tudo segue com a mesma simplicidade, como se não pudesse ser de outro modo- qualquer pessoa podia ter inventado essas frases, penso eu que você pensa.

 Ler é um segredo. Você sabe ler, então por que não percebe o que está pra lá da superfície do papel, já que este apenas dissimula sem realmente esconder, como um pedaço de vidro transparente, o que está escrito através das linhas.

Eu leio muitas coisas, algumas impossíveis. Um exemplo basta olhá-lo alguns segundos para ler o que você está sentindo. Posso até lê-lo por inteiro. Posso até ouvir os seus pontapés no ar, por achar que mais uma vez errei, e gritando, e batendo com os pés no chão: não, não, não!

Às vezes eu saio, caminho na rua, lendo apenas mentalmente. Ando pelo meio das casas e leio, leio, e ninguém dá pontapés nem grita. As arvores balançam, mas não me interrompem. Só quando chovo eu me abrigo debaixo de uma varanda ou no vão de uma porta, paro mentalmente de ler e fecho o livro: você.

Então ouço a chuva. Ouvir também é uma absoluta atenção as coisas. Tudo fica suspenso no vazio. E depois o som acontece: a chuva, o vento. O vento nas folhas, no caminho de terra, nos telhados, na chuva. Agora eu ouço a chuva, formas fugidias de água.

Mas ouvir não é separado de ver, sentir ou entender. Nem se pode ler, de cada vez, uma coisa isolada, sem dar conta de que há em volta um contexto. Se bem que é a percepção do contexto que depois faz ressaltar, exageradamente nítida nos contornos, cada coisa em si.

E também não se pode, e não se quer ouvir declarações de amor uma só vez, é preciso ouvir mil vezes, depois disso, as muitas vozes do que eu escrevo. E depois o silêncio. E mesmo o silêncio faz parte de ouvir- o silêncio entre uma coisa e outra, a respiração ou a pausa, antes que outra coisa aconteça. Ouça e deixe o mundo das minhas palavras entrarem em si. Fique indefeso, apenas escute.

Assim, o som da minha voz segue seu curso e deixa de existir separadamente, torna- se parte do que acontece. O que também é um risco. Minha intenção de algum modo é estilhaçá-lo, fazê-lo sair de si mesmo e arrastá-lo para um estádio indiferenciado, não humano, contra o qual o escrever finalmente triunfa.

Um triunfo imperfeito, contudo, o livro tem sempre de recomeçar, de acontecer de novo, para que o caos não se instale. Enquanto dura (mas nunca dura para sempre), a leitura que eu faço de você é uma forma de ultrapassar o caos, obrigando-o a caber numa medida. Ler você talvez seja isso: tomar parte na leitura entre a medida e o caos.

Ainda o amo. Cada vez mais. Como se o amor fosse, agora, a evidente manifestação da humanidade e das suas relações ambíguas com os mistérios de que nada se sabe.

Eu ainda julgo compreender o perigo de toda essa energia desencadeada e solta, como um rio extravasando o leito, à mercê da qual fico sem defesa. Em um texto, ao contrario do que você pensa as frases não acontecem ao acaso, remetem umas para as outras, formam sempre um conjunto. Basta procurar o que já tinha sido encontrado, colocar as vírgulas no lugar certo, e quando tiver alguma hesitação procurar reconstituir o que falta antes de olhar, ler novamente- como se o papel fosse um tecido eventualmente rasgado, que se pode tecer de novo, no lugar da falha. Memorizar tudo o que você diz é muito diferente do que as pessoas pensam. Mas guardo essa idéia para mim. E depois, esqueço tudo. Lembrar só vai me fazer sofrer, assim como guardo para mim as suas descobertas.

Jamais diria a alguém, por exemplo, que posso lê-lo, olhando-o simplesmente. Parece ainda mais perigoso falar demasiado, tenho medo de que as coisas que penso possam se voltar contra mim, uma vez ditas. Mas a vontade que eu tenho de que tudo saiba é maior que o medo.

Embora me encha de perguntas: de onde você vem? Veio de lá? Veio para mim? Por que você quer acreditar e quer que eu acredite que o meu amor não é retribuído. Ninguém o inventou, estava lá simplesmente lá, desde sempre. Mas o que significa desde sempre? E onde é lá?

E o ritmo? O barulho deste bumbo cadenciado que não para nem pra descansar. Do corpo, talvez, do coração batendo. Houve um momento em que me soltei do corpo e me tornei uma coisa separada. Houve um momento em que eu comecei a existir por mim mesma. E essa idéia me pareceu vertiginosa. Mas não contei a ninguém, estava atenta ao perigo de acontecer a mim o que supostamente a você aconteceu.

Pediu-me que fosse desbravar noutros mundos, e deixá-lo em paz dentro do seu, e assim o fiz, mas pelo que eu sei o seu apelo não o convenceu a si mesmo.

Eu posso explorar o mundo em você: quase uma brincadeira assustadora, em vou andando- até onde? Até onde? Não há limite, você esconde o infinito, parece simples, um espaço tão curto que cabe dentro dos meus braços.

Às vezes você é uma armadilha que me apanha de surpresa. Julgo brincar com você, mas é você quem brinca comigo. E sempre no meio de uma frase, um acidente reduz a distância, ou, pelo contrário, aumenta-a, uma diferença mínima, que, no entanto arrasta pesadas conseqüências, como se o bater de asas de um inseto fizesse rebentar uma tempestade. O acenar, longínquo, de outra frase , que sem saber como se insinua, sobe à superfície e me levo aonde eu não desejo ir.

São impulsos que se organizam em frases, ligando-se ou desligando-se, temas que parecem desaparecer como se os tivesse abandonado, mas depois voltam insidiosamente, aqui e ali, por vezes quase irreconhecíveis- E me levam aonde? Aonde? Oh, Adriano é demasiado misterioso para não me embrenhar nele sozinha.

Foi um dia diferente, hoje. Eu olho arrastada de surpresa, e desejo que não acabe nunca. Suportei muito mal esse intervalo que me pareceu terrivelmente longo, asfixiado por um ar sufocado e tenso.

Foi então que decidi tapar os olhos e não vê, mas como conseguiria despregar os olhos de um Adriano suspenso. Se eu o deixar de olhar, ele cai. É o meu olhar que o mantém equilibrado lá em cima. E por isso não posso fechar os olhos, tenho de olhá-lo até o fim.

Ou talvez fosse possível trazê-lo de volta através da atenção. Nesse preciso instante, ele existe. E, se consegue existir no instante, não há motivos para não conseguir existir noutros instantes e ser capaz de, por fim, se ligar ao tempo.
Tudo está muito claro, e vem ao encontro do que eu penso: o amor é imensamente livre, mas até certo ponto previsível, mas isso não constitui um mistério. É apenas assim. Naturalmente.

Eu também tenho medo. Medo de me afogar em você. Medos do improviso, das frases que andam na minha cabeça e ainda não foram proferidas, e mesmo em sonhos voltam e não acham solução até implodirem ou explodirem dentro dos sonhos, não lhe disse que só de olhá-lo já ouvia o modo exato como deveria soar o tom proferido por você. E eu indo atrás desse som interior como atrás de uma luz, com a sensação de não poder alcançá-lo.

Eu estou ligada a você e você faz parte da minha vida. Eu encontrei em você alguma coisa que não é da ordem das palavras. Embora só possa Transmiti-la em palavras.
Entregar-me a você é uma tarefa desmedida, humilde e perigosa. Você ri, acende um cigarro. Talvez como forma de perder seu tempo e a sua vida. Ou também de ganhá-los. Eu não concordo com esta versão de sua verdade; o título do meu livro que você ousou escolher por mim: “Pare de perder seu tempo e sua vida”. Mas tem tanto direito de existir como outros títulos que inundam o mundo: “Como adestrar cães”, “Como fazer amigos”, “Como podar roseiras”, “Como cultivar cactos”. E o tempo não se encarregará de substituí-lo por outro.

Como a última frase de um romance que já está contida na primeira. É sempre o tom que decide tudo. Nos verdadeiros romances o essencial é até certo ponto previsível.
Caminhei debaixo de chuva, um dia desses, com as roupas e os sapatos encharcados, então pensei uma visão desencantada que poderia ser suportável, desde que haja uma boa dose de felicidade individual, e no fim se tudo falhar e eu perder todas as minhas apostas restarão sempre, no fim, o quotidiano vivido.


Suely carvalho.

Meu Amor:

Você é não. Você não é tudo pra mim. Não é minha única causa nem minha única guerra. Seu nome não é o único titulo da minha historia. E meu silêncio não é propriedade exclusiva sua. Você não é meu único carnaval. E não são apenas seus defeitos que me irritam. Não sou monoteísta para adorar apenas um único Deus. E não imagine que sua mão estaria sozinha pra me socorrer. Meu vocabulário não se limita a seus adjetivos- existem mais sete maravilhas no mundo além de você. Você não é minha única adrenalina. Nem todos os componentes dos remédios que me aliviam.

Você não é cada centímetro quadrado do meu chão. O amanhã acontecerá com ou sem você. Meu interesse não é restrito só as suas polêmicas. Não só suas piadas me fazem rir. E seus ouvidos não são os cúmplices de minhas aflições. Você é só uma de minhas vozes. Minha conta telefônica não vem obsessivamente com o seu numero. E no meu arquivo musical existem mil e outras músicas além daquela que me faz lembrar você. Quando olho para o meu umbigo não é você quem vejo. Sua tristeza não é a única que me comove. E as pernas que me sustentam não são você.

Não sou teleguiada, conheço muitos outros endereços além do seu. Seria prepotência achar que meus pensamentos são monopólio seu, você é um dos sótãos em que me escondo. Você não é meu único álibi. Existem outras pessoas das quais também espero perdão. Você não é um compromisso onipresente na minha agenda. Outros elementos também compõem minhas fotos. Você sozinho também não mata minha fome. E não sejamos hipócritas: há outros perfumes no ar além do seu, assim como, há outras peles que me excitam. Você não é o único com 36,5ºC. E não é apenas o seu corpo que pode abrigar meu sexo. Você não é meu único vicio.


E por não ser tudo isso, por ser um entre tantas alternativas, você é o meu não a todos os outros. Você é a escolha. Meu sim a você é um exercício de livre- arbítrio praticado segundo a segundo. Sim a um contrato sentimental que nada distingue, separa, sobrepõe, submete. Sim a uma política de boa convivência sem falsidades e sob todos os esforços. Sim. Aquele que me desperta a curiosidade de um aprendiz e faz de mim um embrião a multiplicar e ser, a cada dia, uma nova pessoa e também a mesma. Sim a quem, quando me vejo ao longe, ainda espero ter pra conversar. Um sentimento que existe não por dependência e nunca usado como moeda de troca. Peça fundamental no equilíbrio do meu caos. Você é aquele por quem me arrisco a cruzar todos os limites da comodidade para tentar ser melhor. Você é aquilo que me falta dia a dia, que desejo e persigo. Obra em aberto que me inquieta e me encanta.

Você é sim. Essas três letras ecoam em mim. E me reconstrói. Porque você não é um valor: você é um bem, um talento, uma espécie de reserva ecológica da minha sensibilidade. Você pra mim é como a leitura de um poema. Ou me arrebata ou não é poesia. Nem você. Você é como uma palavra que busca uma rima. Quando duas palavras se beijam nasce a poesia. Você é aquela “realidade ficcional” na qual estou imersa quando leio um romance: uma suspensão temporária do descrédito do mundo. Dizer que você implica perda da razão não parece correto. Talvez seja mais apropriado dizer que você carrega outra razão.

Levar as coisas bem aos poucos, juntar nossas vidas com a calma de cada pequeno sim cotidiano e fazer com que a festa da vida no planeta, seja a festa da nossa vida também. O sim, palavra que já ouvi outras vezes e só provou que sou capaz de viver ainda mais feliz, como também viver um amor ainda maior. Positiva a qual, a partir de agora, você se resume pra mim. Porque se você é sim, eu sou não ao que não mais me espera.
Eu amo você.

Suely Carvalho

Carta ao meu Amor: O ócio.

Sonho com o dia em que terei três horas pra não fazer nada e meu corpo sente saudades de uma encarnação em que fui peixe - nem o peso a carregar. Na Riviera Maya, recentemente o coração deu saltos diante das águas enluaradas de um mar soberbo. As ondas quebravam e os plânctons cintilavam em luzes de néon. A lua era cheia, o sol dourado, a areia solta e o mar... Azul. Os dias teriam sido uma sucessão de clichês, não estivesse eu agarrada ao presente como um náufrago aos restos de seu barco. Aquilo eram minha vida e pronto. Por não haver futuro a preocupar, as belezas naturais deslumbravam como se vistas pela primeira vez - só mesmo o ócio pra resgatar a verdade que há em todo lugar-comum.

Quero meu tempo de volta. Quem foi que inventou o futuro? Os índios não foram, viviam um eterno agora no caça, come, deita, acabou, levanta e caça de novo. Os budistas lá no outro lado do planeta também nunca quiseram saber do amanhã. E por toda a Idade Média as pessoas viveram de forma essencialmente contemplativa, na adoração a Deus. Foram os burgueses e os humanistas da Renascença que inventaram de "acordar" o mundo. Resolveram que a religião seria repensada e o modelo clássico de antropocentrização das artes e ciências seria adotado. Criaram o futuro e a necessidade de pavimentar o caminho até ele. O homem clamou pelo domínio da natureza e surgiram as noções de planejamento e crédito. A questão era: qual a vida mais nobre, a da contemplação ou a da produção, devemos viver no ócio, ou optar por sua negação, o neg-ócio?

A conversa vai longe e é filosófica, mas, resumindo o problema que resvalou pra nossos dias, é o seguinte:

Renunciando ao agora e desistindo do ócio criamos uma civilização de prazeres adiados em nome de um por vir que não chega nunca. O lado bom desta busca é o encontro com o novo e a sensação do renascer (o tédio dos reis, pra ser minimizado, impulsionou muito o crescimento das artes). Então, o preço pago pelas tribos de ócio foi a ausência de desenvolvimento e cultura, mas o preço pago pela civilização é o enquadramento do espírito, a correria e a falta de paz.

O que você faz no domingo? Consegue deixar a brisa levar ou precisa de uma intensa programação para o bom aproveitamento de seu lazer? Dá tempo de olhar em volta, sentir, ouvir, perceber o que se passa com as pessoas que quer bem? E olhar pra si, fazer aquela faxina interna, dá? Porque a gente veio aqui pra evoluir e encontrar a paz, mas será que é possível com tanto ruído em torno? Sonho de rico é praia deserta, luz de lampião e rede com vista pro mar - vida do pescador.

Eva e Adão viviam felizes lá no ócio sublime. Quando cometeram o deslize fatal, Deus expulsou-os da Perfeição e como castigo impôs-lhes o trabalho. Mas Deus é pai, e mãe, e por morada forneceu um mundo de natureza equilibrada onde em se plantando tudo dá. Com algum esforço sobraria bastante tempo para os deleites do espírito. Muito se andou, as eras se passaram e chegamos aos tempos modernos - vivemos a época do homem civilizado. No entanto, nunca como hoje fomos tão predadores e gananciosos.

Machucamos Gaia até a Mãe gritar, e o castigo divino virou um vício esgotante. Estamos tristes e se não cuidarmos agora do agora, o futuro não vai existir. Sei não, mas acho que nem nas fantasias mais tortuosas Deus imaginou filhos tão destrambelhados.

Cansada e sem tempo, peço perdão.

Suely Carvalho

Carta ao meu Amor: Demasiado amor.

E foram-se os meses. As voltas com as minhas conquistas e os meus problemas. Não reparei na passagem dos dias. Para as pessoas que abusam da minha boa vontade-obrigada, um muito obrigada. E agora? É hora de ter assuntos, uma idéia inteligente costurada nos dias de ausência.

Mas olhando pra fora em busca de novidades noto que os outros também não se tocaram com a andança do tempo. Hoje, liguei a TV à procura de um tema. O apresentador fala da alta da bolsa de valores. Em outro canal alguém fala de sua aversão a problemas, adiante vejo que os erros continuam saindo do mesmo armário, mudou só a prateleira.

Bom, pelo menos toda essa procura serviu pra eu começar a escrever isto. Sabe como eu tenho me sentido ultimamente? É claro que você sabe, afinal nos últimos meses não tenho feito outra coisa senão lhe confessar todo o meu amor, e como o meu corpo compreende o calor do seu corpo dentro de mim e fora de mim também. Sinto-me vagando por um árido deserto. E jamais vou me cansar de lhe declarar isso. Eu recém chegada de um faz de conta, vou preencher estas linhas com o quê? Difícil. A coisa está feia.

E parada. Caiu a esperança na utopia e não há mais discursos consistentes surgindo na linha do horizonte. Estou descrente, e me sentindo derrotada pela falta de tudo, mas principalmente pela falta de você. O que fazer então? Escrever apenas liberta meus pensamentos. Você consegue me encontrar no que lê? Você ainda não consegue me ver, não é mesmo? Não sei cobrar o que é meu de direito. Às vezes aceito qualquer proposta aparentemente salvadora porque quem propõe parece saber mais do que eu.

Os desencontros só produzem egoísmo e descaso. Interesso-me pelo que não interessa. Quero as coisas apenas pra mim, quero errado, e quero pra já. Normal. O que aconteceu com o amigo? Algum dia ele foi amigo? Ele existiu? Parece que se foi na virada das páginas. Se der tempo, porque não perguntar a um vendaval aonde deixa as folhas secas. Será possível? E ninguém vai gritar. Quando vai cair a última gota para mobilizar o seu eu silencioso, aquele que não sai nas colunas sociais, mas que pensa e propõe soluções? Como parar de nadar contra a correnteza e não se opor ao sentimentalismo incondicional?

Verdade que se o problema é real, ele não é só seu (só é sua a falta de qualquer reação a essa triste realidade). Infelizmente o amor se banalizou piorando de vez a relação entre amigos e criando indivíduos que não sabem ouvir. Indivíduos infelizes. Alguns vêem o eu te amo como um simplório gesto de carinho, mas não pra mim. Não mesmo. Nunca minhas palavras serão ditas como um gesto simplório. Aceita-me!

Há uma relação muito estreita entre bem-estar e estar junto, quanto mais se quer menos se tem, por que ficar se comparando com o vizinho, que tolice. Então na atual trama das aparências que mexe o meu mundo, o medo precisa sair de férias. Que tal tentar enxergar nas pessoas o seu lado bom, ao invés de ver nelas uma ameaça, e se ligar a isso. Quem sabe estarás mais contente e menos isolado. Reconstruir a teia é um largo caminho. Paciência. O amor que fica é o mesmo. As lembranças são as mesmas. E tudo o que eu escrevo pra você é o que eu penso e o que eu sinto.

Crie a sua filha com mais dedicação, e tente ser mais gentil comigo, se for mais eficaz em seu trabalho, se tiver atitudes que nasçam da bondade e não da busca por uma recompensa. Estarás fazendo a sua parte por este doente terminal que é a sociedade em que a gente vive. Isso parece papo de avô e talvez seja. Mas quem sabe o vovô já não soubesse das coisas lá nos idos do passado? E quem garante que o vovô não é a única luz de sabedoria nesse túnel de mesquinhez?

Ontem fui a Igreja, ao convite de uma amiga, a única. E enquanto o padre celebrava o seu sermão, e filosofava sobre o amor, pensava eu nas possibilidades de como tudo isso terminaria, e no silêncio daquelas filosóficas palavras bíblicas, comecei a filosofar também.

O Amor, pra mim, é como uma bênção da Igreja para as pessoas que acreditam nela. Para mim ele é a luz da misericórdia. Jamais abro a minha porta atrás de mim sem a consciência de estar praticando um ato piedoso para comigo mesma. Principalmente quando de resto nossas vidas estão expostas a uma ferida aberta. Nada me desarma tanto quanto as suas atitudes de receptividade.

É tão relativamente pouco o que as palavras podem fazer em relação a falta que eu sinto de você. Tão relativamente pouco o que as palavras podem fazer em relação a seja lá o que for. Mas que outra coisa tenho eu?

A lamúria é um vírus, uma doença mortal, infecciosa, epidêmica. Não quero ouvir lamurias. Não de você. Você entende? O tempo que passamos juntos é tão pouco, não dá pra perdermos o pouco tempo que temos com lamúrias. Não é descaso meu para com você, não se trata de desinteresse meu por seus problemas, nem pela sua vida. E a isso tudo você chama de egoísmo meu. E diz que me odeia por eu não entendê-lo. Não quero compactuar com essas orgias de mesquinhez emocional as quais você sempre tenta provocar em mim.

Quando eu corria à noitinha, ficava olhando o pôr-do-sol, que levava tanto tempo para se pôr, para que nós seres absurdamente cegos nos deslumbrasse com aquela infinita difusão de cores. Como se afinal o sol na hora de ir embora encontrasse tantas qualidades no mundo que a hora o fazia partir a contragosto. E pensava também nas suas lamúrias, que se iam embora junto com o último feixe de luz.

Quando aquele apresentador falou sobre a alta da bolsa de valores, lembrei do apaixonar-se por ser uma coisa altamente supervalorizada. Apaixonar-se consiste em quarenta e cinco por cento de medo de não ser aceito e quarenta e cinco pro cento de esperança maníaca de que justamente desta vez esse medo seja desautorizado- e finalmente de modestos dez por cento de frágil sentimento de que exista a possibilidade de amor. Por isso não nos apaixonamos com tanta freqüência. É uma constatação. Primeiro amei você, amor de amigo, terno e paciente. Depois me apaixonei, paixão carnal, dessas que não acontecem todo dia. Comigo as coisas têm uma tendência a acontecer ao contrário. Não existe uma condição pra amar. Você ama e pronto, sem esperar nada em troca.

Tenho observado você com muita tranqüilidade. E compreendi algumas verdades, a verdade não precisa ser um colapso, ela pode muito bem assumir a forma de uma sólida passagem para o não ressentimento. Sabia que você blefa maravilhosamente. Prefiro mil vezes sentar e esperar calmamente você começar a verborragiar as suas verdades, do que andar no meio de todas as suas mentiras medíocres.

Não há ser humano que não fique aliviado quando alguém o obriga a falar a verdade. Eu gosto da verdade. Eu gosto do que é verdadeiro em você. De sua essência.

Gostaria tanto de não ter essa mentalidade tão medíocre quanto as suas mentiras. Mas não tenho, mas não tenho. Tenho um jeito luminoso de perceber as coisas pelo lado inusitado, do tipo que torna tudo óbvio, mas só depois de apontado por mim. Às vezes também é delicado a ponto de a gente ter que virar a página com cuidado para não perturbar o momento. Sim, eu poderia ser uma personagem, e você também por que não? Somos uma linda história e passar a sua imaginação pra longe de nossas repetitivas circunstâncias não fará mal algum.

Eu amo você, Meu Amor.


Suely Carvalho

Carta ao meu Amor: "Quando você faz amor comigo".

Quando você faz Amor comigo...

Meu corpo todo, cada pêlo, cada órgão lá de dentro,
Sorve aquilo tudo de tal jeito,
Que não sei como é que o peito,
O coração ali desfeito,
Tudo preenche, estufa, cresce e, se esvazia ao mesmo tempo.
Num instante vou morrer.
No outro me acho plena em você.
Quando você faz Amor comigo...
E que a noite a gente deita,
O mundo pára o rodopio,
E em conduta de desvio
A lua acende sendo dia
E eu te lavo, cuido,dou comida, cafuné
Que em meu sonho o mundo aceita
Eu sou sua, satisfeita, nua,
Você, meu macho
Eu, imperfeita.
Quando você faz Amor comigo...
Mas que em seguida me acorda,
E me despreza, me larga, me rejeita,
Coloca outra no teu leito.
Sofro mais, meu amor desfeito.
Posso até arranjar um bem semelhante
Está cheio por aí solto, galante
Quem sabe até melhor amante?
Ele, meu macho.
Eu, relevante!
Num instante ia morrer
Totalmente presa a você
No outro me acho, bobo
Livre de você.
E se ainda a tua cabeça vens zoar comigo
Cheio de cantada em sustenido
Um dia há de ser passado antigo
Eu vejo bem,
Embora não tivesse sido só desejo
Gostei, quis, desejei, e muito
Só provar um pouco do teu beijo.
Agora está bem cheio aí, bonito, limpo,
Quem sabe até mais distinto
Pronto para Amar o Amor que sinto.

Suely Carvalho

Carta ao meu Amor: Planeta Amor.

Lar, doce lar. Entrei em casa, larguei as sandálias no meio da sala, abri a porta do quarto, liguei a lâmpada, deixei a luz se esparramar e fiz o mesmo, na cama. Ai que saudades das minhas almofadas cheirosinhas, livros, incensos, ai que saudades de mim. Fechei os olhos. Esqueci o mundo. Mas o melhor mesmo é, depois de esquecê-lo, voltar para ele e encontrá-lo perfumado, vivo, pulsante, como se tivesse vida própria.

Meu mundo estava ali, lindo, limpinho e arrumado, bem como eu gosto. Até as flores nos vasos estavam frescas, exuberantes, exalando um perfume macio, aconchegante, bom de suspirar. E como suspirei! Enchi de ar os pulmões e a mente de recordações, de um encontro que há muito não acontecia, em climinha de amor. E de despedida. Ah, não precisa fazer essa cara de surpresa. Não foi uma despedida pra nunca mais, muito pelo contrário, foi para até breve. Brevíssimo.

Você é perfeito para mim, não conseguiria ficar muito tempo longe da sua boca que me atordoa, das mãos que aos poucos vão conhecendo a intensidade do toque que aprecio, do sorriso, do olhar, dos braços, de você por inteiro, homem, macho, viril, mas principalmente da inesgotável certeza de me sentir desejada. A sua companhia potencializa esses momentos fogosos e profundos. E Ainda por cima ouvi-lo gemer e saber que logo, logo, nós dois estaremos gemendo juntos. Você é um cravo, e eu um botão aberto, é, precisa terminar a frase?


Nossas noites são um mistério só. Daqueles que a gente entra e parece que não vai começar nunca, olha a magnitude do todo e de tão impressionante pensa até em desistir. Mas justo nessa hora tudo começa a acontecer, a se movimentar, e o medo vai dando lugar a expectativa que vai se transformando em euforia, e a coisa toda vai subindo, subindo, e quando você vê atinge o topo e olha para baixo, naquele exaticíssimo segundo entre o “ ainda estou segura ” e o“ agora já era ”, você tem a certeza de que está perdida, que não há nada mais a fazer senão rezar, gritar, berrar a plenos pulmões. Isso claro, enquanto o frio na barriga que te consome as entranhas não tomar conta de tudo e o silêncio do espasmo final amolecer até a última de suas hemácias pulsantes.

E como tudo isso é fácil. E tão bom! Nada de preocupações, só prazer; nada de erros, só acerto; nada de tristezas, só alegria e, principalmente, nada de pensar no mundo lá fora, só o mundo de dentro: eu dentro de você, você dentro de mim. E chega uma hora em que não se sabe mais quem é quem e, você começa a se transformar nessa outra pessoa que também é você, mas que desconhecia. Lembrei aquele abraço primeiro cheio de evidências de saudades... Aconchego e uma boa dose de toques nada sutis. Deslizei suavemente para os seus braços, assim, molemente e sempre. Suas mãos firmes abraçaram- me pela cintura. Ficamos ali olhos nos olhos, em pé, perto da porta. Dei um meio sorriso, safadinho. Mas baixei o rosto, submissa. Você levantou meu rosto, arrumou meus cabelos, beijou meu rosto suavemente, mordeu meu lábio no meio de um sorriso e beijou de novo, e beijou de novo, e outra vez, e roçou o seu nariz no meu, e voltou a me beijar.

Senti um arrepio na espinha, e uma coisa escorregando pelo meu pescoço: era a sua boca, a sua língua quente. Suas mãos levantavam meu vestido e me acariciavam, acariciavam e me tocavam, tocavam e se deleitavam, e eu me derretendo... Completa. Imediatamente com o contorno do queixo deliciosamente, degustado. Paralisei. Ficaste me contemplando. Não consegui emitir uma só palavra. Não ouço as suas perguntas. Por que me torturar desse jeito? Ficamos assim, até cairmos um dentro do outro, sem freio, inebriantemente. Por que não me abraçar assim pra sempre?

Há certas coisas inexplicáveis na junção de dois universos particulares, cuja intimidade é tão ausente quanto desnecessária, às vezes. Há sintomas que não precisam de tempo para surgir, como músicas que não precisamos ouvir várias vezes para gostar. Há pessoas cuja química bate com a nossa na primeira vez, feito dois ímãs que se atraem terrivelmente. É muito raro. Duas pessoas que se conhecem tão pouco chegar ao clímax juntos, sem os estímulos a parte que não o encaixe perfeito. Nosso êxtase é tão mágico, tão intenso, tão surpreendente que palavra alguma, ainda que se aproxime, descreve o que rola.

Meu coração descompassado aos poucos se acalma. Juro. Acho que vou morrer ali mesmo. Depois dessas coisas eu não consigo falar, nem rir, mal consigo respirar, minhas pernas estremecem a tal ponto, como se eu levasse um choque. Cósmico. Eu não consigo voltar a mim. E olhar pra você, e vê-lo com um sorriso relaxado, estampado. Só me alivia ainda mais. Fico admirando a beleza rústica de seus traços, as suas cores, que mudam inevitavelmente, a sua boca delicada, macia. Seu cheirinho de homem suado. Tentando fazer papel de sério. Seriíssimo. E quando você vai parar de me dispensar e pedir carinhosamente e indecentemente pra gente começar tudo de novo?

Já percebeu que a brisa sempre fria da noite de nossos encontros nunca é suficiente para apagar o fogaréu de nossos corpos? Descobri em você uma incrível capacidade de manter acesa. Ininterruptamente.
Na cama, suas mãos escorregadias deslizavam a minha pele como se estivessem num longo corrimão de prazeres. Quadris encaixados, pernas entrelaçadas. Éramos um emaranhado de braços, fome, respirações entrecortadas, ritmo cadenciado. E muito, muito desejo.

E quando seu rosto foi descendo, descendo, e as mãos subindo, subindo. Agarrando meus peitos. Saboreando- os sem dó. Eu os amo, mas você parece amá-los ainda mais. Eu adoro quando você me suga. Engoli meu peito como se estivesse num deserto sem beber nada há dias. Meus peitos excitadíssimos chegam a doer de tão duros, pedindo para serem abocanhados, pedindo não, implorando. E então digo: venha. E você vem.
Minha respiração ofegante se descontrolou. Senti alguma coisa quente e na horizontal, firme, entre as minhas coxas, erguer-se em busca do encaixe perfeito. “Ainda não”, sussurrei. Mas, eis que o desponta, enfim. Vertical, ereto, mais forte do que eu... Ai, ai, ai... Quanto mais eu gemia mais você se enfiava dentro de mim, até me preencher totalmente. Meus “ais” o excitam?

E quando você me vira de quatro e, quando desvira, me vira pelo avesso. E a sua língua, penetrante, ligeira e lenta, vai me invadindo, escalando proeminências e, como é morna, e gulosa, e certeira. E se a língua não tem dentes, não sei como ela faz, lambe mordicando, mordica lambendo, arrepia, arranha, puxa, repuxa, engole, e meus lábios se tornam seus. E quando todos vão se tornar de fato? Todos eles, os de cima e os de baixo, e os de dentro e os de fora? Vai ser um tesão do início ao fim.

Minhas pupilas se dilatam de prazer no exato instante em que você penetra seus olhos nos meus. “Perdi”, penso, “preciso reconhecer que você manda em mim, e me protege”, deliciosamente. Fui ao fundo, beijei a sua boca. Lábios úmidos, urgentes, masculinos, procuraram os meus. E o nosso beijo foi o último e o primeiro, e nossos toques foram descobertas, e ao mesmo tempo velhos conhecidos, e nossas almas se fundiram em uma só. Frente a frente, nós protagonizamos o ato final. Foi o momento nosso de entrega e encantamento. Tudo o que a gente faz é tão lindo, tem uma energia tão boa, é tão calmante, que eu poderia estar nesse estado de relaxamento físico e mental a minha vida inteira.

Faltou um pouco de filosofia nisso tudo, você não acha? Pois bem:

Existem vários tipos de pessoas: as que curtem e, as que não curtem e, as que curtem imaginar os outros curtindo, as que cruzam os próprios limites, as que sonham em cruzar e, as que jamais cruzarão, as que nunca dizem nunca e, as que não avançam por não saberem que podem. As que podem e sabem que podem, e cruzam, e curtem! E existem ainda vários tipos de mulheres: as que cedem e gostam, as que cedem e não gostam, as que não gostam porque nunca cederam, as que aceitam, as que não aceitam, as que se aceitam! E para todas elas, os corpos, os beijos, consolos, prazeres, identidades, simbioses, línguas, são o que são e o que podem ser. Existem vários tipos de vida. Importante é a gente estar feliz com a que escolheu para si. Eu escolhi viver e ser feliz. E que essa tenha sido uma das melhores entregas de minha vida.

Entreguei- me como quem se oferece espontaneamente a um altar de sacrifícios. Sabia que minha escolha em não tornar esse relacionamento uma rotina, odeio rotina, mas sim um hábito, não tinha volta. Sabia que você, Meu Amor, tão metade minha, tão meu, não me pertencia. Porque eu o desejo intensamente, mas do que jamais desejei alguém, mas o desejo livre. Porque todas as vezes que ficarmos juntos será porque queremos estar juntos e, não porque simplesmente, juntos, estaremos. Serei sua, apenas sua, enquanto isso durar. Mas para ser sua, preciso antes, ser eu mesma. Ai que saudades... Fiquei completamente fora de órbita. Impossível aterrissar desse jeito. No mundo dos prazeres, não há Lei da Gravidade. É bom estar de volta ao meu mundo.

Suely Carvalho






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Carta ao meu Amor: Manifesto.

Não acho uma boa misturar amizade com sexo, mas descobri que sexo com amizade é muito bom. Nem todo amigo é degustável, mas toda degustação pode, sim, tornar- se algo mais. Infelizmente, nós nos acostumamos a envolver- nos justamente ao contrário, o que acarreta dois problemas: um, “ quando você alia o fator “troca de fluidos” ao que antes se limitava a“ troca de idéias”, você corre o risco de perder o amigo e ganhar um caso. Dois, quando mantém a transa impessoal, artificial, tentando mostrar para o outro que você é daquele jeito e obriga- lo a aceitar, sutilmente, é claro. Com isso você deixa de cultivar um tempero imprescindível a um bom sexo: a intimidade”.

Um amigo é parte de minha vida como um porta-retrato na estante da sala, está sempre presente, mesmo que ausente fisicamente. Passo por ele várias vezes por dia, com o olhar ou com a lembrança, e sabemos que o papel dele é estar ali, na alegria ou na tristeza. Quando o levo para cabeceira da cama, presença e lembrança se intensificam. Começamos a dormir com ele. É uma mudança e tanto, de relação para relacionamento. Você está preparada para isso? Ele está? É o que vocês querem?

Transar com um amigo não existe. Existe transar com ex- amigo. Você pode até se iludir que a amizade não vai mudar. Entenda: vai mudar e muito. Mas se os dois já não são os mesmos e nada mais era como antes, pra que se apegar ao passado? A vida é feita de ciclos, as mulheres fases, os homens inconstância. Uma dessas três verdades virá átona cedo ou tarde. Caiu na cama? Deita e rola. Deixou- se derrubar? Entregue os pontos. Derrubou? Administre. É uma questão de responsabilidade. Se foi impulsivo, premeditado, previamente conversado, nada disso importa. O que importa é que aquela pessoa que lhe conhece pelo avesso, bem, agora lhe conhece por dentro. O seu conceito de cumplicidade deve ser reavaliado. E as palavras medidas.

Você pode até falar de tudo com um amigo. Até de sexo, por que não? Sexo com outras. Mas no momento em que o assunto vira o sexo entre vocês, é o fim das confidências. Não que seja proibido. É simplesmente deselegante, para não usar o termo “desagradável”. Absolutamente desnecessário saber o que ele faz com a fulaninha da esquina, ou da sala de aula, que seja. Não há hipótese de rirem juntos do fato de ele ter dispensado você para sair com outra. Entre amigos, rolaria compreensão e incentivo. Com sexo vira uma tremenda sacanagem. Antes de ser amiga, Eu sou mulher. O segredo do sucesso está em dosar os seus argumentos, se é que existe um. E o fantasma de suas carências.

Amigo é aquele que não vê em você uma possibilidade de sexo. Por isso é tão raro. Mas concordo que, nesses tempos de escassez de caráter, colorir uma amizade tem lá suas vantagens. É um porto seguro. Você já sente amor pela pessoa, mesmo que ainda não sinta paixão, se é que vai. Há respeito e carinho Há muito tempo descartei a literalidade do verbo amar, que pode querer dizer “você é linda”, “eu te admiro muito” e por aí vai. Sem medo de julgamentos errôneos.

Você tem todas as vantagens. Por que não evitar as desvantagens? Arraste- me para sua casa. Saiamos da superficialidade, sem selar compromisso. Agregar amizade a um relacionamento eleva o grau de cumplicidade a uma intimidade já atestada e aprovada. Agregar um relacionamento a uma amizade é o inverso, a intimidade que entra na cumplicidade. Não acredito em certo ou errado. Cada um sabe o que é melhor pra si. É uma questão de reconhecer o que o deixa feliz. E permitir- se. Só isso. Só há um item imprescindível: tesão. Sem tesão, amigo é irmão. Nem com pincel atômico você vai consegui colorir.

Sexo não é o que se faz. Nem como se faz. Sexo é o que é. E tudo aquilo que a gente conquista. É preciso respeitar o tempo de cada um. Faça isso valer a pena. Apenas espere. Espere nossos circuitos internos entenderem que é inútil lutar contra o inevitável. O inevitável sempre acontece. Uma hora dessas eu vou ter ouvidos e paciência pra escutar você falar o que você fez, seja lá com quem for.

Suely Carvalho

Ao Meu Amor

Será que elas sabem que quando você goza é comigo que você está? Que os beijos foram pra mim a cada gota de suor? Será que sabem que nos seus silêncios é comigo que você conversa. E na hora dos seus mistérios, estamos de mãos dadas? Que sou eu a Dulcinéia que te acompanha nas lutas quixotescas contra os moinhos de vento de suas fantasias, elas sabem? E elas sabem que você é um caipira turrão, osso duro de roer? Não bobo, isso elas não sabem por que você não entrega o ouro tão cedo, aliás, melhor contar que você não entrega o ouro nunca. E você sabe que eu nem consigo deitar com outro, porque meu corpo grita Não, e me chama de vagabunda? Tem um buraco que fica entre os dois peitos, um plexo, que apesar de solar, deveriam chamar pluvial. Pois ali me entra cada coisa. Outro dia entrou o mar inteiro, subiu até a garganta, apretou tudo, e está lá- não quer sair.

Vou te mandar um pouco Cabe aí, ou você continua empanturrado pela terra toda que engoliu para não morrer de fome da falta de mim? Até quando será, vida minha, que o destino espera a gente se cansar de andar em círculos? Será que ele vai ter uma paciência infinita com essa mania de a gente se amar de longe? Ou um dia ele vai puxar-nos pelas orelhas, botar-nos juntos e dizer: ”Acabou o Tom e Jerry. Estão perdendo muito mais do que jamais vão encontrar. Um olhando para o outro, já! Viram? E tocados pela varinha do cosmos nós saberemos que era ali que sempre quisemos estar. Você fará um abrigo para o nosso amor. To até vendo, ficou bonito, agora sim, você sempre teve bom gosto?

Eu te puxo pra rede, faço um cafuné sem fim e conto histórias pra gente dormir. Ai que bom... já pensou o cansaço que vai bater quando finalmente a gente parar com isso? Ah, só assim você vai perceber e contar pr’alguma delas que pensa em mim todos os dias, e que há dias em que pensa sem parar? Perturba? Você vai ver. A gente não consegue fazer as coisas, tocar o barco. Nem fingir direito que gosta de outro dá. Eu acordo todos os dias tomada por você. E ando acordando de madrugada. Você parece que pula em cima de mim,e eu dou aquele salto e pronto, é risada, conversa fiada, lágrimas, de um tudo, mas nada de dormir de novo. Você não deixa. Depois passo o dia bocejando e não tem como explicar, vou dizer o quê?

Passei a noite com o meu amor que não estava comigo por que... Por quê? Outro dia eu acordei querendo morrer de saudade. Tive palpitações, era grave, liguei pro médico. “Doutor, estou sofrendo de amor, não paro de chorar, meu coração vai sair por esse buraco entre os meus peitos, e agora não é uma boa hora pr’eu morrer. Tenho sete disciplinas pra estudar nesse período, tenho artigos pra escrever, tenho que trabalhar, tenho dois bebês: meu sobrinho e minha mãe pra cuidar, socorro, preciso de um remédio poderoso! Ele me conhece bem, fez a receita na hora. “Vou te passar porque num momento de apuro, evita uma ida ao médico. Parta pra outra! Jamais a encheria de pílulas. Isso passa. Muito mais depressa do que você imagina. Volte para sua Ioga e ouça músicas clássicas.

 Já ouviu Sonata? Tão romântico’’. Onde eu estava? Ah sim, Sonata é para insônia. Porque desculpe mas eu tive que contar pra ele que você não me deixa dormir. Você viu? Ele falou pr’eu te mandar embora. Mas eu já fiz isso, nós sabemos quantas vezes não é? E você não vai. Quando vai, não sai de dentro de mim do mesmo jeito, entranhou, é praga da vida. Ai que praga boa... Boa nada, imagine eu, super controlada, tendo que me entupir de comprimidos, francamente! Ainda bem que o meu médico é são. Sabe o que o meu sobrinho me falou? Ele que me adora, sempre gostou desde neném, sabia? Outro dia me vendo triste ele perguntou, “Su, porque você fica com quem te faz sofrer assim? Ele só tem oito anos!’’ E eu, “ Porque acho que quando vale a pena a gente tem que fazer tudo, tudo o que for possível pra dar certo.”

Passou-se algum tempo.

“Você fez tudo o que podia?”

“Acho que sim.”

“Então presta atenção, da próxima vez que ele cruzar a sua mente, você pensa, “que bom que eu me livrei desse cara!”

Não sei de onde ele tira essas idéias. Acho que a convivência comigo, aos oito anos puxa! Mas é que ele não agüenta me ver sofrer por tanta contradição. “Não faça com o Adriano a mesma coisa que você faz com os outros!”. Podia ser simples. Na minha outra história, quase deu certo, o quase que me mata. Até o João aqui da esquina dorme na calçada agarrado com a sua Maria.

O Cristian tem razão, podia ser bem mais simples. Mas e aí... pra quem eu iria escrever esta carta? Repleta de sim’s categóricos.

Suely Carvalho

Carta ao meu "Amor": Lembranças.

O que realmente acontece é o que menos importa. A memória que você tem do que aconteceu é a que fica. O momento dura alguns míseros segundos. A lembrança dura para sempre. E se aperfeiçoa na linha do tempo. Se o sabor do Amor é tão bom quanto eu penso que seja, não posso afirmar. Mas o tempero que revivo em sonhos acordada torna os seus beijos melhores a cada dia. Lembro hoje com mais intensidade do que ontem. O amanhã certamente potencializará os sentimentos. Quanto mais perto de repetir o que foi bom, mas a fantasia transforma o óbvio. Excita. E o instante é sempre melhor, muito melhor do que o que já passou. Assim escrevo a história da minha vida. São essas histórias que você sempre irá ler.

As lembranças dos momentos de prazer ficam no corpo e ele pede mais. O corpo fala sabia e, como fala. A prova disso eram os seus convites inesperados, um encontro em sua casa no meio da tarde. Não dava para notar? Minha ansiedade borbulhava só de pensar em seus olhos nos meus desbotando a minha pele de tanta emoção. Desejava ouvir sua voz macia enquanto me amava. Desejava o seu abraço se desfazendo em mim quando se mostrasse frágil de prazer em volta do meu corpo. Desejava as lágrimas que brotavam de seus olhos, de vez em quando. O seu sorriso que ficava suave quando eu chegava perto e acariciava o seu rosto. Eu sentia tudo isso, não adiantava esconder.

Até que um dia aceitei um desses convites, lembra? Chegando lá havia urgência no entrarmos um no outro. Deitados, na cama, frente a frente. Meu Amor surpreendeu ao erguer minhas pernas ao alto, admirando-as como uma obra prima e suavemente deixando-as escorregar entre seus dedos enquanto alisava tornozelo, batata da perna, coxas e, outras carnes. “Olha isso, você está toda molhada”, sorriu. Sim, poderia ter dito que meu corpo fala e não tinha o menor controle sobre o que ele dizia.

Já havia passado algum tempo depois dessa loucura. Eu precisava me resolver e a solução era ir até a sua casa. Entrei no carro, o desejo me guiando, certa de onde chegaria. Mas às vezes sofro de amnésia aguda. Qual era mesmo a rua? Lembrei, então, de sua boca em meu ouvido sussurrando o quanto eu sou gostosa e, com mais intensidade e, com mais prazer. Lembrei da compreensão dos seus dedos em concha sobre os meus seios, do apertar terno nos mamilos, de ser puxada de encontro ao tórax com virilidade e ternura.

Lembrei-me do corpo quente, o roçar de nossas peles, você ajoelhado na cama, cada veia sua pulsando dentro de mim, de sentir-me preenchida e plena. Mas não lembrei onde estava, nem qual era a casa.
Concentração. Era preciso manter o foco. A idéia de aparecer de surpresa me excitou demasiada, a ponto de eu ter passado imprudentemente, no mesmo lugar, até entender que estava perdida, preferia ter me achado nos seus braços. Como você reagiria? Perderia o ar? A cor? Teria uma ereção? Adoro provocar, perceber visualmente as mudanças no corpo e no comportamento do outro pelo simples fato de eu me fazer presente ou me aproximar. O seu olhar faminto é o melhor elogio que eu posso receber.

No outro dia, voltei, com medo e, ainda frustrada com o que havia acontecido anteriormente. Ao menor movimento, um fechar de olhos, um devaneio inesperado, a ferida da abstinência forçada doía em mim. Como eu sobreviveria a um próximo encontro, que nem havia sido marcado? Se não estava suportando esperar nem o minuto seguinte.

O encontro finalmente aconteceu. Aquele encontro havia sido mitológico. Eu, longos cabelos negros caindo em cachos sobre o corpo nu, ele atrás, corpo largo e protetor. Eclipse do sol acobertando a lua, pernas firmes e seguras, lindo. Eu, face distorcida de prazer, mãos espalmadas sobre seu peito. Meu Amor era potência máxima, lampejos de um perfil másculo que se deixava fotografar pela minha retina. Duplicava-se no reflexo. Sentia os pingos de suor, gotejarem, milímetro por milímetro até o abismo entre as nádegas, encharcando-me. A cada toque, um gemido e um desfalecer. A cada beijo no pescoço, na nuca, trovões internos me estremeciam. Quase tive um orgasmo. Mas o súbito de dor era maior e, parecia não diminuir nunca.

O melhor da nudez é a extensão de pele que ela proporciona. De pracinha com balanço nos transformamos em parque de diversões, com direito a montanha-russa e pau-de-sebo. A dor, agora, já era minimizada com o abrupto desejo. É difícil explicar a sensação do gozo. A simetria ideal, a solução exata, a textura que provoca, o sabor que atiça. É como um vulcão que explode do âmago, rompe a racionalidade, derrete resistências. Vai arrasando barreiras, o desejo sobe queimando feito lava, brota dos poros, escorre nas veias, deságua denso, molhando a calcinha, isso quando há calcinha. A gente sabe que é perigoso ir além do limite, mas a raridade do espetáculo fascina. O chamado é irresistível. Ao menor tremor da terra, vamos caminhando em direção a fervura enquanto fogos de artifício estouram nos céus de nossas bocas. Línguas profundas em beijos ardentes. Entre nós literalmente a pressa é inimiga da perfeição.

O comando é seu e eu adoro. Entro só com meu apelo. E o seu consentimento, é claro. O resto, quem entra é você. Isso não quer dizer que eu não possa ir por cima. Faço o que você quiser. É menos uma questão de obediência cega do que de submissão voluntária. É bom deixá-lo fazer seu papel de homem. Sinto-me mulher. Deixo meu prazer ao seu bel prazer. Sei que vai voltar pra mim. Em dobro.

Eu pensei que esse fosse o nosso último encontro, para mim, cada encontro nosso é o último. Mas não era.
Meu Amor me fez um novo convite. Mas fui a uma reunião com meus amigos. Lá, eu poderia responder por mim. Pelo menos enquanto revivia, entre suspiros, os momentos passados com ele, brindei com meus amigos. Fisicamente eu estava presente, sorrisos, tilintares de taças, mas minha cabeça viajava longe. Meu Amor era tudo o que eu queria beber.

Não resistimos. O desejo sempre trai. Encontramo-nos de novo. Chegamos a sua casa de madrugada. Eu, o silêncio e Meu Amor. Beijos intermináveis. Vias sem fim. De repente eu estava imprensada em uma parede-armadilha de seu quarto. Ele tateando o armário em direção a cama, boca a boca, língua a língua, pés descalços abandonando calças e todos os despudores.

Um espasmo fez meu umbigo piscar. Dedos entravam feito formigas sob a camisa. O leve roçar de seu nariz em minha pele arrepiou-me inteira- barriga, seios, nuca, ponta do cotovelo. Restou-me erguer os braços. Rendida. Meu peito nu grudou no seu. Com um só sussurro, meus mamilos intumesceram-se. Até as minhas orelhas se contorcerem de tesão. Sem pressa. Envolta por seus braços, ficamos ali, garganta com garganta, na simbiose mais profunda.

Intimidade vem com o tempo, mas a química do aqui e agora é instantânea.
Nunca pensei ser assim, mas com você estou sendo. Você desperta em mim uma espontaneidade que flui, uma interação criativa. Vontade de ir além, experimentar, ousar, deixar a coisa toda seguir sem rédeas. Nada é gratuito, nem planejado. A gente se encontra. E acontece. É o instinto mais puro, livre em um descampado, regido apenas por um magnetismo animal, uma atração irresistível. Apenas a dormência abraçada ao aconchego. Ainda agora, cenas de nós dois voltaram a minha mente, a minha pele reagiu como se voltasse ao momento. Arrepiada. Pensei no beijo e senti o beijo. Aquele gostinho seu que não sai da minha garganta. Pensei em suas mãos e senti-as. Pensei no seu cheiro, o seu toque... Ai! E então, não pensei mais nada. Fantasiar é bom, mas estarmos juntos é muito melhor.

Suely Carvalho

Carta ao meu "Amor"

Quis evitá-lo achando que era o correto a fazer, mas compreendi que estava enganada. Sou levada a você, qualquer direção que eu tome. Você, agora, é uma das poucas coisas que são certas na minha vida.


Todos absolutamente dizem que é burrice minha insistir contigo, porque, você não tem conserto pra mim. Que não passa de um grande equívoco de minha parte. Mas você é humano; humano e determinado e, ligeiramente arrogante e, acima de tudo forte. E quem sou eu para querer corrigi-lo? Nunca tive capacidade de jogar com você, apenas revelei, declarei, confessei de coração aberto, sinceramente todo o meu amor, frágil, que eu ainda sinto.

Erro meu, confesso que preciso de você, mesmo reconhecendo que isso parece ser uma falha. Mas não é. Aceitá-lo como inevitável em meu destino e, fundamental em minha história, é sinal de que estou no caminho certo.

Sei que apontam para você sempre que surge comigo. Que chegam a rir quando você fala daquele seu jeito grave e fatal. Mas sei também que, sem você, as coisas perdem um pouco de graça. Que tudo fica muito melhor depois que você chega.

Com você, eu estou aprendendo as maiores lições da minha vida. Posso contar com sua presença nos meus momentos mais difíceis? E durante as questões mais complicadas, lá estará você, sempre, oferecendo-me uma escolha? Se não fosse você, juro, eu não me esforçaria tanto para acertar.

E como nos divertimos juntos, hein?! Lembra? Daqueles nossos encontros de final de noite, eu sempre morrendo de sono, mas feliz por estarmos juntos mais uma vez e, você sempre sedutor, pronto para me levar aonde não devia!

Jamais me esqueço da primeira vez em que nos beijamos, fomos estudar no seu quarto e, depois você caiu em mim e, eu na sua boca e, na sua cama.

Nem daquela tarde, em que cometi a besteira de ti fazer uma surpresa e, eu acabei sendo surpreendida por você embaixo dos seus lençóis.

Soube que agora você quer ser político, prefeito? Posso escrever seus melhores discursos. Largaria o francês? Ou cansou de ser incompreendido? Vejo diversas fotos suas, sempre sorridente. Anda freqüentando certos círculos pelo que tenho notado. Só espero que você jamais se esqueça de quem realmente é.

Posso encontrar você- o que acha dessa idéia? Por aqui mesmo, se for o caso de você andar muito ocupado. Pego uma senha e chego bem cedinho a tempo para o almoço. Que tal um bom prato de massa? Martini: é isso que essa ocasião pede.

Mas não banque o assanhadinho, não pretendo transar com você. Nem que tenha algum cantinho no meio do caminho. Nem que o Martini me deixe tonta. Nem que eu não tenha nada para fazer no final do dia- será que nós nunca conseguiremos fazer algo de divertido durante a tarde, além de sexo escondido.

Bom, também se acontecer, aconteceu. Não vamos ficar depois nos culpando. Você não é meu, nem eu sou sua- se não estou enganada.

Aguardo ansiosa a revisão do nosso encontro.

Suely Carvalho

Bucólicas na Panfília

Quando ele voltou, cobri o rosto com as duas mãos.

Ele me disse: ''Não te assustes. Quem viu nosso beijo?

-Quem nos viu? A noite e a lua.

''E as estrelas e a primeira aurora. A lua mirou-se no

lago e contou à agua sob os salgueiros. A água do lago contou ao remo.''

''E o remo contou à canoa e a canoa contou ao pescador.''

Ai,ai! Se fosse só isto! Mas o pescador contou a uma mulher.

''O pescador contou a uma mulher: meu pai e minha

mãe e minhas irmãs, e toda Hélade ficará sabendo."


Extraído do livro ''Canção''.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Fala a verdade:

Você ainda acha que podemos ficar juntos e correr o mundo de mãos dadas, apaixonados como antes? Subir pelas paredes com tanto prazer envolvido entre nós? Trocar beijos fatais, paranormais, surreais? Ter vontade de saber aonde cada um quer ser tocado e nem precisa pedir porque as mãos caminham sozinhas nas direções exatas?

Pois fique sabendo que ainda tenho esperança. Que todos os dias ao acordar, lembro do seu rosto, do calor de seus lábios em meu corpo. Do seu olhar desagregador porque tudo em mim sempre ficou sem forma quando ele me tocava. Amolecia toda. A pele parecia sair de mim e ficar em suas mãos. Eu ficava nua, sem ela para me proteger. E para quê, se era você que a segurava? A única coisa que importava era que eu queria ser sua para sempre.

Ainda tenho esperança e por essa razão dói, sabia? Meu coração aperta e choro de saudade. Os dias passam e não são mais os mesmos. Sua voz linda dizendo "oi". A sensualidade. O tom certo e provocador de loucas vibrações que faziam meu corpo voar como folhas ao vento do outono.

Que dias prazerosos tive ao seu lado. E mesmo que tenha raiva, mágoa, a lembrança é muito gostosa. Fico triste porque um dia vou precisar matar essa esperança que gostaria de ter para sempre. Queria era sair buscando a sua presença. Seu cheiro. Pedir ao destino que nos pusesse frente a frente.

‘Preciso ter isso no peito batendo forte. Que pulse. Me acorde, mas, por favor, me mantenha viva.

Desejos me provocam de maneira sobrenatural. Até a lembrança do ar que saía por entre seus dedos eu lembro ainda, porque parecia um sopro de vida para minha pouca vida.

Que difícil entender o coração e jurava que tudo era concreto, certo como dois mais dois são quatro. Coisas que nunca senti, nossos corpos unidos fizeram nascer. Ah! Como eu acredito. Acho que é para sempre a nossa história de amor.

É em seus braços que eu quero estar. Mesmo que o tempo passe vou esperar. Que se dane se essa vontade é verdade ou mentira, que importa? Minha alma é sua para sempre. Ela abriga as melhores lembranças, os momentos que pude ser divertida, engraçada, bem humorada.

Mas que sentimento bom de sentir. A saudade das noites sem limites. De sua pegada em meu corpo, para dormir fazendo amor. Como ríamos de nós dois. Repetidas horas de prazer. Tudo em volta parecia nada. Depois a gente programava o dia seguinte buscando no chip cravado em nossos cérebros a memória invadida pelos vírus da paixão. Ele destruía tudo: o passado dolorido, as histórias tristes, os dissabores vividos.

Dentro do meu espírito ainda é tempo. Preciso ter isso no peito batendo forte. Que pulse. Me acorde, mas, por favor, me mantenha viva. Controvérsias. Palavras soltas. Como lembrar que o tempo se foi se em mim a agenda parou de rodar? Esperança é assim. Mexe, contorce, invade as entranhas. Transpira nos poros as lágrimas da saudade.

‘Vou seguindo em frente. Um dia de cada vez. Não pode, não pode. Tudo bem, eu entendo. Mas a esperança ninguém tira daqui.

Sabe? Sou sua. Totalmente sua. Não importa quanto tempo passe. Nem quantas vezes vou dizer "sim" a você mesmo com medo de sofrer de novo. Nem os dias que vou esperar. No fundo, eu queria era estar em seus braços. Descansar meu corpo, deslizar as mãos sobre seu peito. Aplaudir o imenso orgasmo que sempre tive quando viajou por dentro de mim. O combustível de minha vida. Censura que não mais existia. Você rasgou todos os papéis-documentos que me puniam por ser infeliz, estes que eu guardava dentro de mim há anos.

Essa é a ultima esperança. A que quero ter sempre dentro de mim. A da palavra contida que eu queria gritar e que chegasse até você. Sou viciada em seu toque. Meu êxtase.

Vou seguindo em frente. Um dia de cada vez. Não pode, não pode. Tudo bem, eu entendo. Mas a esperança ninguém tira daqui. Esta que faz imaginar que, do nada, aparece e me rouba do sonho que pode não ter fim. Torna realidade. Tira-me do faz de conta e me faz feliz.

A última esperança em mim é a que não morre.