quarta-feira, 13 de janeiro de 2010


O Ser do coração

Dias atrás tive a minha própria visão de Proust. Quem não conhece as Madeleines dele. No volume I de Em busca do tempo perdido, o personagem principal embarca em uma viajem pelas suas memórias ao morder um desses bolinhos franceses. Só vai acabar páginas depois, ao final de uma dessas obras primas da Literatura. No meu caso, a viajem começou com uma frase do meu querido professor de pilates.
Ao final de cada aula, durante o relaxamento, ele costuma pedir ajuda a nossa imaginação. Sempre penso na estranheza dessas evocações, como “imagine uma luz amarela envolvendo o seu fígado”... Quando eu conseguia imaginar essa luz em volta do meu fígado, a aula já tinha acabado. Naquele dia, porém ele disse: “imagine uma flor bem perfumada”.

De imediato senti o perfume da primavera, uma árvore não muito lata que se cobre de flores roxas e brancas. A minha primavera tem um perfume extraordinário e tão poderoso que toma conta de um quarteirão inteiro. Debaixo dela eu me sinto uma ninfa dos bosques e vivo mitologias só minhas.
Eu sempre amei a vida e a amo até hoje por ter me dado algo que só percebi agora, há mil quilômetros e décadas de distancia, em uma aula de pilates, pelo cheiro das flores da primavera do seu jardim (o jardim da vida) que me alcançaram em um sobressalto da memória.
A vida me deu um grande jardim. E eu não sei o que teria sido de mim sem ele. Não é um jardim qualquer.

Se algumas pessoas têm de se resignar aos canteiros ordenados da aparência, as cores discretas e as combinações comportadas subversão da ordem. Em um enorme quintal a vida plantou de tudo. E tudo misturado. E deixou essa orquestra vegetal crescer segundo os humores de cada espécie.
Havia flores comestíveis, frutas exóticas, regiões com plantas tão fechadas que aranhas e insetos desconhecidos se multiplicavam em cenas de sexo violento e explicito que qualquer um podia assistir com olhos estalados. Nessa geografia desvairada, como uma criança sem tempo, eu comia flores, mastigava formigas e via os louva-a- deus perderem literalmente a cabeça. Não era um jardim, era uma selva. Tardiamente me dei conta disso. Charles Darwin poderia ter construído pelo menos uma parte de sua teoria sem sair desse jardim.

Eu dormia em casa, mas vivia ali. Era naquele jardim que “as estações se sucediam produzindo nada além de si mesmas”. Para mim, a crueldade humana da ordenação da vida no lado de fora dos muros do quintal só era suportável porque eu podia me entregar à vegetação indomável daquele jardim. Eu não era capaz de racionalizar, mas sentia com as minhas vísceras que apenas esse particular fazia sentido. A vida estaria fora de controle, não nas regras que regem uma cidade que, não deixa de ser uma versão menor do mundo, o jardim mantém a minha sanidade.
Ao crescer, perdi o jardim. Ele continuava lá, mas eu já não era capaz de enxergá-lo. A vida continuou plantando. E à medida que as pessoas foram morrendo ao redor dele, mais e mais voraz e fechado o jardim foi se tornando. Já era difícil vislumbrar a beleza daquele mato.

 Para alguns pode ser uma ótima idéia se livrar de um matagal. Menos para mim. Nunca saberei transmitir a sensação de assisti-lo ser esmagado pelo concreto de um prédio impessoal. Mas a vida jamais impede que um dia “o inverno se torne primavera”. E ao vir de novo que as plantas já começavam a subverter os cômodos desmatados, fiquei aliviada. Eu estava a salvo.
Foi apenas ao final da aula de pilates, ao ser tomado pelo cheiro das flores da primavera do meu jardim secreto, que compreendi algo que esteve sempre ali. Tão óbvio talvez óbvio demais para ver. O jardim é o meu coração selvagem, o ser do coração. Na violência daquelas plantas entrelaçadas, crescendo sem poda e sem propósito, ele protege o melhor de mim. Impede que a tragédia da vida não como ela é, mas como nos obrigam a acreditar que ela seja, esmague o melhor de mim.

É ali naqueles cantos úmidos e sombrios que o meu coração bate com fúria, enquanto nas paredes de suas casas alguns encarceram suas grandes esperanças numa máscara de resignação.
Deitada na mesa de pilates, de noite com apenas um iogurte de cenoura e laranja no estomago, eu vi os braços e pernas do jardim se enraizando e virando seiva e tronco na selvageria da vegetação semeada por ele a revelia de todos. Naquele jardim onde eu guardei a melhor porção de mim mesma, para sempre eu seria, como Jean Coctau, “a mais bela flor do mundo”.
Como é possível compreender algo tanto tempo depois e em contexto tão fora de propósito?
Parta você também em busca de seu próprio coração selvagem. Descubra também que, em um minuto de assalto da memória, provocado por um cheiro de flor, que é preciso ter um para viver.

Pela vida a gente vai perdendo as unhas, deixando fragmentos de dentes aqui e ali. Às vezes se convencendo de que é preciso se resignar a uma lógica que nos garante ser maior que a gente. Aceitação é uma palavra generosa, preenche de possibilidades. Resignação é a pior palavra da língua portuguesa. É um esmagamento. Sempre fui capaz de compreender a selvageria, jamais a resignação.
Não penso que nascemos para nos resignarmos a esta ou àquela vida. Nascemos para viver. Nesse embate com as tantas paredes cotidianas, é preciso manter nosso coração selvagem batendo. Cravar flores na terra úmida de nossa alma em vez de semear pedras que erguem muros.
Se ainda não desistimos, é porque nosso coração selvagem está em algum lugar, mesmo que não o percebamos. Pode estar em um jardim, como o meu, em um sonho resistente, entre as páginas de um livro por escrever, em alguma mania, em uma obsessão. É nesse segredo só nosso que mora nossa vontade de viver, contra tudo e contra todos os aniquilamentos, para além das máscaras com que cobrimos a estranheza de nossa face. É preciso encontrá-lo para colocá-lo de volta em nosso peito.
Escreva primeiro em seu coração antes de transformar pensamentos em letras, de um outro jeito exercendo a sua outra voz.