quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Carta ao meu Amor: Espero que gostes.

As cartas que eu escrevo para você devem ser de uma simplicidade muito evidente. Uma vez que não passam de meras frases grafadas em um pedaço de papel. E após a sua leitura tudo segue com a mesma simplicidade, como se não pudesse ser de outro modo- qualquer pessoa podia ter inventado essas frases, penso eu que você pensa.

 Ler é um segredo. Você sabe ler, então por que não percebe o que está pra lá da superfície do papel, já que este apenas dissimula sem realmente esconder, como um pedaço de vidro transparente, o que está escrito através das linhas.

Eu leio muitas coisas, algumas impossíveis. Um exemplo basta olhá-lo alguns segundos para ler o que você está sentindo. Posso até lê-lo por inteiro. Posso até ouvir os seus pontapés no ar, por achar que mais uma vez errei, e gritando, e batendo com os pés no chão: não, não, não!

Às vezes eu saio, caminho na rua, lendo apenas mentalmente. Ando pelo meio das casas e leio, leio, e ninguém dá pontapés nem grita. As arvores balançam, mas não me interrompem. Só quando chovo eu me abrigo debaixo de uma varanda ou no vão de uma porta, paro mentalmente de ler e fecho o livro: você.

Então ouço a chuva. Ouvir também é uma absoluta atenção as coisas. Tudo fica suspenso no vazio. E depois o som acontece: a chuva, o vento. O vento nas folhas, no caminho de terra, nos telhados, na chuva. Agora eu ouço a chuva, formas fugidias de água.

Mas ouvir não é separado de ver, sentir ou entender. Nem se pode ler, de cada vez, uma coisa isolada, sem dar conta de que há em volta um contexto. Se bem que é a percepção do contexto que depois faz ressaltar, exageradamente nítida nos contornos, cada coisa em si.

E também não se pode, e não se quer ouvir declarações de amor uma só vez, é preciso ouvir mil vezes, depois disso, as muitas vozes do que eu escrevo. E depois o silêncio. E mesmo o silêncio faz parte de ouvir- o silêncio entre uma coisa e outra, a respiração ou a pausa, antes que outra coisa aconteça. Ouça e deixe o mundo das minhas palavras entrarem em si. Fique indefeso, apenas escute.

Assim, o som da minha voz segue seu curso e deixa de existir separadamente, torna- se parte do que acontece. O que também é um risco. Minha intenção de algum modo é estilhaçá-lo, fazê-lo sair de si mesmo e arrastá-lo para um estádio indiferenciado, não humano, contra o qual o escrever finalmente triunfa.

Um triunfo imperfeito, contudo, o livro tem sempre de recomeçar, de acontecer de novo, para que o caos não se instale. Enquanto dura (mas nunca dura para sempre), a leitura que eu faço de você é uma forma de ultrapassar o caos, obrigando-o a caber numa medida. Ler você talvez seja isso: tomar parte na leitura entre a medida e o caos.

Ainda o amo. Cada vez mais. Como se o amor fosse, agora, a evidente manifestação da humanidade e das suas relações ambíguas com os mistérios de que nada se sabe.

Eu ainda julgo compreender o perigo de toda essa energia desencadeada e solta, como um rio extravasando o leito, à mercê da qual fico sem defesa. Em um texto, ao contrario do que você pensa as frases não acontecem ao acaso, remetem umas para as outras, formam sempre um conjunto. Basta procurar o que já tinha sido encontrado, colocar as vírgulas no lugar certo, e quando tiver alguma hesitação procurar reconstituir o que falta antes de olhar, ler novamente- como se o papel fosse um tecido eventualmente rasgado, que se pode tecer de novo, no lugar da falha. Memorizar tudo o que você diz é muito diferente do que as pessoas pensam. Mas guardo essa idéia para mim. E depois, esqueço tudo. Lembrar só vai me fazer sofrer, assim como guardo para mim as suas descobertas.

Jamais diria a alguém, por exemplo, que posso lê-lo, olhando-o simplesmente. Parece ainda mais perigoso falar demasiado, tenho medo de que as coisas que penso possam se voltar contra mim, uma vez ditas. Mas a vontade que eu tenho de que tudo saiba é maior que o medo.

Embora me encha de perguntas: de onde você vem? Veio de lá? Veio para mim? Por que você quer acreditar e quer que eu acredite que o meu amor não é retribuído. Ninguém o inventou, estava lá simplesmente lá, desde sempre. Mas o que significa desde sempre? E onde é lá?

E o ritmo? O barulho deste bumbo cadenciado que não para nem pra descansar. Do corpo, talvez, do coração batendo. Houve um momento em que me soltei do corpo e me tornei uma coisa separada. Houve um momento em que eu comecei a existir por mim mesma. E essa idéia me pareceu vertiginosa. Mas não contei a ninguém, estava atenta ao perigo de acontecer a mim o que supostamente a você aconteceu.

Pediu-me que fosse desbravar noutros mundos, e deixá-lo em paz dentro do seu, e assim o fiz, mas pelo que eu sei o seu apelo não o convenceu a si mesmo.

Eu posso explorar o mundo em você: quase uma brincadeira assustadora, em vou andando- até onde? Até onde? Não há limite, você esconde o infinito, parece simples, um espaço tão curto que cabe dentro dos meus braços.

Às vezes você é uma armadilha que me apanha de surpresa. Julgo brincar com você, mas é você quem brinca comigo. E sempre no meio de uma frase, um acidente reduz a distância, ou, pelo contrário, aumenta-a, uma diferença mínima, que, no entanto arrasta pesadas conseqüências, como se o bater de asas de um inseto fizesse rebentar uma tempestade. O acenar, longínquo, de outra frase , que sem saber como se insinua, sobe à superfície e me levo aonde eu não desejo ir.

São impulsos que se organizam em frases, ligando-se ou desligando-se, temas que parecem desaparecer como se os tivesse abandonado, mas depois voltam insidiosamente, aqui e ali, por vezes quase irreconhecíveis- E me levam aonde? Aonde? Oh, Adriano é demasiado misterioso para não me embrenhar nele sozinha.

Foi um dia diferente, hoje. Eu olho arrastada de surpresa, e desejo que não acabe nunca. Suportei muito mal esse intervalo que me pareceu terrivelmente longo, asfixiado por um ar sufocado e tenso.

Foi então que decidi tapar os olhos e não vê, mas como conseguiria despregar os olhos de um Adriano suspenso. Se eu o deixar de olhar, ele cai. É o meu olhar que o mantém equilibrado lá em cima. E por isso não posso fechar os olhos, tenho de olhá-lo até o fim.

Ou talvez fosse possível trazê-lo de volta através da atenção. Nesse preciso instante, ele existe. E, se consegue existir no instante, não há motivos para não conseguir existir noutros instantes e ser capaz de, por fim, se ligar ao tempo.
Tudo está muito claro, e vem ao encontro do que eu penso: o amor é imensamente livre, mas até certo ponto previsível, mas isso não constitui um mistério. É apenas assim. Naturalmente.

Eu também tenho medo. Medo de me afogar em você. Medos do improviso, das frases que andam na minha cabeça e ainda não foram proferidas, e mesmo em sonhos voltam e não acham solução até implodirem ou explodirem dentro dos sonhos, não lhe disse que só de olhá-lo já ouvia o modo exato como deveria soar o tom proferido por você. E eu indo atrás desse som interior como atrás de uma luz, com a sensação de não poder alcançá-lo.

Eu estou ligada a você e você faz parte da minha vida. Eu encontrei em você alguma coisa que não é da ordem das palavras. Embora só possa Transmiti-la em palavras.
Entregar-me a você é uma tarefa desmedida, humilde e perigosa. Você ri, acende um cigarro. Talvez como forma de perder seu tempo e a sua vida. Ou também de ganhá-los. Eu não concordo com esta versão de sua verdade; o título do meu livro que você ousou escolher por mim: “Pare de perder seu tempo e sua vida”. Mas tem tanto direito de existir como outros títulos que inundam o mundo: “Como adestrar cães”, “Como fazer amigos”, “Como podar roseiras”, “Como cultivar cactos”. E o tempo não se encarregará de substituí-lo por outro.

Como a última frase de um romance que já está contida na primeira. É sempre o tom que decide tudo. Nos verdadeiros romances o essencial é até certo ponto previsível.
Caminhei debaixo de chuva, um dia desses, com as roupas e os sapatos encharcados, então pensei uma visão desencantada que poderia ser suportável, desde que haja uma boa dose de felicidade individual, e no fim se tudo falhar e eu perder todas as minhas apostas restarão sempre, no fim, o quotidiano vivido.


Suely carvalho.

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