quarta-feira, 3 de março de 2010

A história é sua.

Eu sempre me senti como Cheherazade, aquela garota esperta das mil e uma noites. Não porque sou esperta, mas porque de algum modo sempre soube que contar histórias me salvava de não perder a cabeça, como era o caso de Cheherazade, mas de perder a mim mesma.
Quando era muito pequena e não sabia ler, imaginava histórias para escapar do medo do escuro. Contava para mim mesma na minha cama de bebê crescido. Quando entrei na escola, imaginava enredos que me carregavam para além das crueldades infantis que me aterrorizavam tanto ou mais que monstros noturnos. Sempre soube que contar histórias me salva da versão adulta do medo do escuro, ordena a vida, me dá sentido e identidade.
Ao tornar-me uma narradora da vida fui aprendendo algo determinante para o curso da minha existência. Toda a vida é uma invenção própria. Não que ela não seja feita de fatos, de dados concretos, de eventos incontroláveis. O que é absolutamente uma criação própria é a forma como cada um olha para sua vida.
De fato, há uma só existência. Mas são várias as possibilidades de narrativas desta mesma existência, um mesmo episódio, por exemplo, vivido por você e sua mãe será contado às vezes de maneira totalmente diversa por você e por ela. E ninguém estará mentindo. Da mesma forma, o mesmo fato vivido por você poderá ser narrado de formas opostas por você mesmo, em momentos diferentes da sua vida. E você estará sendo verdadeiro em ambas as ocasiões.
Isso não significa o que acontece ou que aconteceu. Apenas que há muitas possibilidades de olhar para o que acontece ou aconteceu. Há muitas verdades possíveis. E a escolha de como olhar para os eventos (ou para falta deles) de sua vida que vai determinar a própria vida. Ou seja, ao escolher como olhar para sua vida você escolhe quem você é.
Quando olho para trás, para os 25 anos transcorridos de minha vida, não posso pensar nela como um filme de terror. Durante muito tempo, embora não pudesse pensar, era assim que eu via a sequência de episódios que me constituía. E chegava a ficar envenenada por isso.
Aos poucos, eu mesma fui enjoando dessa narrativa. Cansei do papel de mulher atormentada que havia sido destroçada pelos moinhos de Carlota. Resumindo: eu me via como uma heroína de romance clássico. Comecei a perceber que era heroína de folhetim de banca de revista. E não gostei muito da queda de hierarquia na literatura mundial.
Hoje olho para a mesmíssima sequência encadeada de episódios como uma vida com alguns pesadelos e tropeços, mas com muita diversão e intensidade também. Uma vida, enfim, misturada com um pouco de tudo como são as vidas e, que me trouxe até aqui e ainda me levará a muitos lugares. E olho para aquela personagem grandiloquente que eu era com ternura.
O que aconteceu? Descobri que o poder de contar minha história está em mim. É meu. Sou eu que decido quais são os pontos culminantes, os ápices da minha existência, ao olhar para o passado e escolher o que vai dar sentido ao presente e somar o futuro. Da mesma forma que um roteirista de cinema sabe que é preciso mesclar silêncios, drama diálogos inteligentes, conversas banais, respiro cômico e também esquecimentos. E são os cortes no meio da edição que vão garantir o ritmo do filme.
Hoje não tenho a menor paciência com gente que continua culpando a mãe, o pai ou as agruras da infância por tudo o que deveria ter conquistado e não conquistou. Ou gente que culpa o chefe ou a suposta falta de oportunidades por tudo o que deveria ser profissionalmente e não é. Sua história é medíocre por culpa do mundo, parece que a pessoa não tem nada a ver com isso. Só estava passando quando virou personagem de um conto do vigário.
Gente assim gasta a vida repetindo a mesma ladainha, contando a mesma história para si - e para os outros. É um disco quebrado. Como a vida vai mudar se o dono da história só enxerga um enredo possível? Ao observar esse tipo de personagem percebi que, na verdade, ele não quer mudar. Só diz que quer – e afirma não conseguir por fatos externos a sua vontade.
A história é chata, dá sono no meio, mas é segura. Gente assim morre de medo do desconhecido. Prefere uma existência de vítima do mundo a se arriscar a enxerga-se de outro modo. Há um momento em que é preciso se responsabilizar pela vida, por contar sua história ou ficar para sempre refém de versões alheias sobre a nossa existência.
Nem todos são capazes de enxergar a vida com larga liberdade. Nem todos viveram todas as suas faltas. O que podemos é escolher se vamos olhar com generosidade para nossa vida – e para a vida do outro – ou vamos gastá-la inteira nos lamuriando de nossa pouca sorte.
Qualquer um pode escolher como olhar para si mesmo. Todo homem e toda mulher contém em si pelo menos dois espelhos: um deles o reflete como silhueta sem rosto definido, manchado na multidão, destituído de importância; o outro o revela único, singular, um evento histórico irrepetível. É o mesmo homem ou mulher que se pode olhar apenas para o chão e se identificar com a meleca que cola nos sapatos ou olhar para cima e se reconhecer na matéria das estrelas.
Ambas as identificações são fatos comprovados pela ciência. Basta escolher em que espelho você prefere se reconhecer. Parece-me no mínimo curioso que uma parte das pessoas escolhe se identificar com a meleca e viver de acordo.
De certo modo, temos toda a escolha de ser Cheherazade, a garota esperta das mil e uma noites, que decidiu contar histórias para manter a narrativa da sua própria. Ou podemos ser todos, as garotas não muito espertas que perderam a cabeça antes dela porque deixaram que o sultão decidisse o final de sua história.

Suely Carvalho.

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